Outro excelente artigo que está circulando é o Accessibility vs. access: How the rhetoric of “rare” is changing in the age of information abundance, da mesma mina do Brain Pickings, que é um dos blogs mais fantásticos da web
Ao longo dos últimos anos, o inexperiente campo das humanidades digital tem dado passos significativos com uma série de projetos ambiciosos de digitalização trazendo para a web raros artefatos culturais – manuscritos, telas, celulóide, marginalia – que costumavam apodrecer nos arquivos institucionais. Mas embora esses esforços, tanto subsidiados pelo governo como pela iniciativa privada, podem ter tornado uma riqueza de informações acessíveis, é uma história totalmente diferente perguntar quantas pessoas esses materiais atingiram – quantas pessoas realmente ganharam acesso a eles – e é um questão que remete para a cambiante relação entre escassez e valor.
Eu já havia comentando em um post anterior que se investe alto em projetos de digitalizações, mas essas imagens (especialmente) e demais documentos, muitas já sob domínio público em termos legais, ficam presos aos catálogos e softwares sofríveis das instituições abrigadoras, não são rastreáveis pelas máquinas de busca, muitas vezes não estão disponíveis em JPGs e arquivos simples, e não oferecem possibilidade de intervenção nos dados, na curadoria arbitrária dos bibliotecários. Basta ver um projeto como o Flickr Commons pra ver como estamos tecnica e mentalmente atrasados.
Minha sugestão é que para resolver esse problema, o mais lógico seria se aliar a grandes empresas de tecnologia (google por exemplo) ou oferecer uma metodologia de trabalho mais aberta, alguma estrutura crowdsourcing que englobasse desde o processo de OCR até a atribuição de comentários e tags. Ou então, deixar como está e criar uma série de espelhos em sites e redes sociais melhor desenhadas para atender aos critérios das máquinas de busca (metatags, metadados, exif).
Em algum tempo atrás como exercício eu criei uma conta no Flickr com algumas imagens de Marc Ferrez (que estão sob curadoria da Biblioteca Nacional e do Instituto Moreira Sales). Percorra as fotos no Flickr, depois tente percorrer as fotos na BN e no IMS. Depois peça para o google enquanto robô fazer o mesmo e me diga o resultado. Depois fui mais além e criei um Domínio Público Brasil, que seria uma espécie de espelho das obras digitalizadas pela BN, mas desta vez dipostas em um Tumblr temático. Se as obras são de domínio público, eu poderia livremente criar sites espelhos, utilizando os mesmos dados catalográficos definidos pela instituição abrigadora, mas em conformidade com os critérios de rastreamento do google, para melhor possibilidade de recuperação em um sistema pervasivo de consulta à informação.
O texto em questão dá uma guinada da questão da disponibilização para o problema dos filtros de consumo. O que é um salto para a segunda fase dentro do que eu chamei alguns anos atrás de etapas na curadoria (digital) realizada pelos bibliotecários: a primeira fase sendo a apresentação de dados (onde nós, no Brasil, estamos entrando com dificuldade), a segunda fase sendo a possibilidade de intervenção na curadoria (open data) e a fase final a reincorporação no acervo dos dados remixados pelos usuários, após crivo dos bibliotecários (Flickr Commons).
Historicamente, os dois principais tipos de obstáculos para a descoberta de informação têm sido as barreiras da conhecimento, que abrangem todas as informações que não podemos acessar porque nós simplesmente não sabemos sobre sua existência em primeira instância, e as barreiras de acessibilidade, que se referem às informações que nós sabemos que está lá fora, mas permanece fora do nosso alcance prático, de infraestrutura ou jurídico. O que a convergência digital tem feito é resolver o segundo obstáculo, que ao trazer para o domínio público muita informação anteriormente inacessível, tornou o primeiro pior no processo, aumentando a quantidade de informação disponíveis para nós, criando assim uma riqueza de informações que não podemos humanamente estarmos cientes devido a nossas limitações cognitivas e temporais, e acrescentou uma terceira barreira – uma barreira de motivação.
Daí ela quase cai no mesmo buraco negro que é tentar explicar consumo de informação saudável em uma economia de abundância, mas se recupera adiante.
Adendo – pra quem não se lembra, tratamento de informação têm sido há muito tempo encarado em termos catastróficos, lembrando sempre corretamente pela minha professora Rosali Fernandes (“explosão informacional”). Ou seja, nenhuma novidade.
e pô, essa galera não viu mesmo o Cory Doctorow né? Pra que perder tempo comparando economia de escassez com economia de abundância, quando o nosso papel na verdade deveria ser de guias dentro da economia de abundância (o que no fundo sempre foi um dos papéis dos bibliotecários).
A relação entre a facilidade de acesso e motivação parece ser inversamente proporcional, porque, como o grande volume de informações que se torna disponível e acessível para nós aumenta, tornamo-nos cada vez mais paralisados para acessar tudo, menos a mais proeminente das informações – de destaque por meio de cobertura jornalística, destaque por meio de recomendação dos pares, de destaque por meio de alinhamento com os nossos interesses existentes. É por isso que a informação que não é rara em termos técnicos, em termos de ser gratuita e aberta a qualquer pessoa disposta e bem informada sobre como acessá-la, pode ainda continuar a ser rara em termos práticos, acessada apenas por um punhado de estudiosos motivados.
E a partir daqui que entra o insight do Caruso, quando em uma geração de retardados sem bagagem epistemológica, o papel dos curadores se torna ainda mais crucial.
E é isso que eu acredito: curadores de informação são os polinizadores necessários que cruzam entre a acessibilidade e acesso, entre a disponibilidade e apropriação, orientando as pessoas para conteúdos interessantes, inteligentes, culturalmente relevantes que “apodrecem” em algum arquivo digital, assim como suas versões analógicas utilizadas no porão de alguma biblioteca ou museu ou universidade.
Porque é o seguinte: o conhecimento não é um processo de sentar na cadeira e esperar cair do céu, é uma atividade bastante prafrentex [tradução minha]. Só porque o conteúdo é de domínio público online e está indexado, não significa que aqueles fora do pequeno grupo auto-selecionado de estudiosos que já são interessados nele irão descobri-lo e praticá-lo. (A relação entre domínio público, acesso e acessibilidade fica ainda mais complicada quando a lei de copyright está envolvida, como evidenciado no recente caso notório Aaron Swarz / JSTOR.)
São os curadores de informações que nos empurram para a frente, guiando a curiosidade para os tipos de conteúdo que não encontraríamos normalmente, mas que nos torna infinitamente feliz por ter ajudado a encontrar.
O que tudo isso significa em termos das três barreiras de acesso é que os arquivistas digitais resolvem a barreira de acessibilidade, fazendo com que conteúdo previamente escondido em arquivos analógicos disponíveis na world wide web, e curadores de conteúdo resolvem a barreira do conhecimento, trazendo para nossa (limitada) atenção pedaços notáveis de informação a partir destes arquivos digitalizados e, idealmente, contextualizando-os dentro do nosso quadro atual de conhecimento e interesses. Mas arquivistas digitais e curadores de conteúdo não vão resolver todos os nossos problemas informacionais. Certamente, podemos terceirizar a digitalização e a acessibilidade, e podemos até mesmo terceirizar a curadoria, mas não podemos terceirizar a curiosidade, a mais alta forma de motivação. E uma vez que a curiosidade é a porta de entrada para o acesso, não podemos terceirizar o acesso, mesmo no contexto da maior acessibilidade possível.
Que grande curadores fazem é a engenharia reversa desta dinâmica, enquadrando a importância cultural primeiro para ampliar a nossa motivação em se envolver com a informação. Alguém que simplesmente compartilha um link para um belo manuscrito do século 13 pode agarrar sua atenção efêmera por um momento fugaz de prazer visual, mas alguém que compartilha o manuscrito no contexto de como ele se relaciona com os ideais e os desafios da publicação na atualidade, para nosso entendimento compartilhado de trabalho criativo e os sistemas de valores de autoria em transformação, vai ajudar a integrar este item de arquivo com o seu conhecimento existente e interesses, unindo a sua curiosidade com as suas motivações para se envolver verdadeiramente com o conteúdo.
Porque em uma cultura onde a abundância substituiu escassez como o maior problema de informação da nossa era, sem esses humanos fabricante de sentido e guias da curiosidade, até mesmo as informações mais abundantes e acessíveis pode permanecer tragicamente “raras”.
Biblioteconomia. Do jeito correto. Só que em outras palavras.
5 respostas para “Acessibilidade versus acesso”
Biblioteconomia é isso mesmo. Somos os servos dos servos dos que estudam.
…É!!!… É um ótimo artigo para uma longa reflexão… apesar de a priori soar estranho….mas na verdade somos mesmo e, também, “curadores da informação”
Em tempos de Abundância: ainda temos que pagar a entrada…
“Em vendas, os esforços se concentram em convencer que os produtos são bons e desejáveis; em marketing, os esforços se concentram no desenvolvimento de produtos conforme uma demanda existente e conforme os desejos do público alvo”. Na maioria das vezes, a Biblioteconomia usa técnica de vendas, isto é, tenta convencer os usuários de que os serviços são bons… Qual seria a saída? Marketing? Estudo de Usuário? Administração estratégica? Desenhar o serviço a partir do contato um a um?O uso dos búzios?Eu não sei! E olha que o velho Lan disse: não duplicar esforços, ampliar serviços existentes… Se o usuário não usa? Qual a razão?
[…] Acessibilidade versus acesso […]
[…] esses dias se tem falado muito de uma tal curadoria digital, que embora eu mesmo acredite ser um trabalho plenamente cabível aos bibliotecários, precisa […]