Um epitáfio para bibliotecários

Digam aos espartanos, estranhos que passam, que obedientes às suas leis, aqui jazemos.

Os versos do poeta Simônides, inscritos numa lápide no desfiladeiro das Termópilas, são uma homenagem aos espartanos e seus aliados que lá morreram tentando deter a invasão persa. Um heroico epitáfio, sem dúvida, para soldados que sabiam que iriam morrer e que, no final, com as armas destruídas em combate, continuaram lutando com as mãos nuas (PRESSFIELD).

O que me incomoda é que  a frase também poderia servir, se o pior dos futuros possíveis acabar se confirmando, como epitáfio para bibliotecários e bibliotecas. Tirando os espartanos, claro, que não têm nada com isso. E por que diabos cismei de relacionar uma história de 480 a. C com o presente e o futuro da minha profissão? Não sei, mas as palavras “obedientes às suas leis” gravadas numa lápide sempre me vêm à cabeça quando o assunto é a sobrevivência dos bibliotecários, porque penso que, se alguma característica nossa pode nos destruir é a precisamente a obediência, em suas variantes mais populares entre nós: o apego excessivo a regras e o respeito exagerado à autoridade.

Não, nunca fiz uma pesquisa. Não, não passei questionário. Sim, eu sei que não podemos generalizar e que existem bibliotecários para todos os gostos. Aprendi a ser bibliotecária com mulheres que eram exatamente o oposto da boa menina comportada que não desrespeita regra nenhuma, sobretudo as da catalogação. Profissionais cultas, que gostavam da profissão, mas também se interessavam pelo mundo além da biblioteconomia, politizadas, aguerridas e dispostas a lutar com mãos nuas pelo que acreditavam. Algumas delas, ainda na ditadura, participaram ativamente de greves e de atividades sindicais. Para quem não sabe, era necessária alguma coragem para fazer isso naquela época. Talvez por causa desse bom começo, jamais consegui digerir certos diálogos que ao longo dos meus 30 anos atividade. Como esses:

– Mas por que não podemos mudar isso?
– Porque é a regra!

– E se a gente fizesse de outra forma?
– Mas sempre foi feito assim!

– Essa regra serve exatamente para quê?
– Para ficar padronizado!
– E por que tem que ser padronizado dessa forma?
– Porque existe uma regra, oras!

– Mas por que você faz isso?
– Porque o chefe mandou fazer.

– Por que você aceita esse tipo de coisa?
– Porque ele (ela) é o chefe. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Eu cumpro ordens.

E as “respostas-padrão” nem são o pior. O mais triste é participar de reuniões numa sala cheia de profissionais sérios e competentes que deveriam questionar, ou pelo menos tentar discutir o que está sendo dito pela autoridade de plantão, mas se calam, por indiferença, medo ou por um estranho conceito de “educação” que parte do princípio de que discordar é feio.

Lília Schwarcz, em seu livro sobre D. Pedro II, menciona ensinamentos dos manuais de bons costumes do século 19: “Nunca diga do que gosta e do que não gosta, e evite fazer questões”; “abra mão de suas posições, sempre, e nunca sustente nenhuma discussão, mesmo que tenha certeza de suas convicções.” (SCHWARCZ , p. 201). Talvez esses manuais ainda estejam em vigor e ninguém me avisou.

Tantas demonstrações de conformismo e autoritarismo explícito no meu ambiente profissional me transformaram numa velha senhora pessimista. Teremos massa crítica e criativa suficiente para dar conta das mudanças que precisamos promover para continuar fazendo sentido enquanto profissionais ou vamos mandar recado pros espartanos?

Em meus tempos de estudante de biblioteconomia dividida entre a enormidade do tédio que o curso me provocava e a vontade de ser e fazer algo melhor na profissão que escolhi, meus colegas e eu pensávamos, provavelmente estimulados por alguns professores modernos, que os bibliotecários eram pessoas muito limitadas. E por isso as bibliotecas eram tão ruins. Nós éramos legais, inteligentes, jovens, bonitos e ousados, criativos e radicais. Chamávamos a nós mesmos de “ala punk da biblioteconomia” e estávamos prontos a mudar tudo. As bibliotecas não seriam as mesmas depois que a gente as tomasse de assalto. Posso estar  exagerando um pouco, mas era mais ou menos isso.

E a turma seguinte também pensava assim, as outras turmas também, e isso se repete há uns 30 anos, pelo menos, conclusão à qual cheguei pela observação de várias gerações de estudantes na instituição na qual trabalho desde 1981, a mesma onde me formei no ano seguinte.
Hoje, muitos dos meus colegas daquela época que ainda estão vivos e atuando na área são chefes de bibliotecas, professores de biblioteconomia ou, no mínimo, profissionais experientes. O mundo já virou do avesso várias vezes, muita coisa mudou e nós, de certa forma, tivemos participação nessa mudança, mas também nos tornamos, aos olhos das novas gerações, os velhinhos conservadores e apegados às mesmas regras que tanto criticávamos. Para a molecada que hoje talvez se veja como a “ala funk pancadão da biblioteconomia” ou algo assim, nós somos os bibliotecários obsoletos que só pensam em criar barreiras para impedir a circulação do conhecimento e que serão os únicos responsáveis pela eventual extinção das bibliotecas. E a roda vai continuar girando dessa forma enquanto existirem bibliotecas, bibliotecários, estudantes e professores de biblioteconomia. Digam aos espartanos etc etc …

Mas, de fato, o conformismo dos profissionais é apenas um aspecto do problema. Há mais perigos fora das bibliotecas do que dentro. Nas instituições públicas, entraves de todo tipo criados pela legislação, pela burocracia e por estruturas de poder quase feudais dificultam em níveis deprimentes os processos de mudança e inovação nas bibliotecas. Precisamos melhorar a qualidade dos serviços prestados, mas não podemos escolher pessoal com a qualificação necessária. As instalações físicas precisam ser renovadas, mas não conseguimos comprar mobiliário decente sem os intermináveis pregões ou licitações, cujos resultados muitas vezes são frustrantes. Usuários precisam de acervo atualizado, mas os livros podem levar meses para chegar e não podemos comprar de livrarias virtuais. “Mas esse livro tem na Amazon, é baratinho” quem nunca ouviu essa frase? As bibliotecas precisam de serviços de outros departamentos em suas instituições que desconhecem o conceito de “necessidade do usuário”. E como o conceito de democracia também não é muito popular nas instituições, muitas chefias, bibliotecárias ou não, costumam administrar de acordo com sua conveniência ou gosto pessoal, ou da forma que mais segura sua carreira, contando com a tranquila obediência de seus subordinados. Temos que divulgar nossos serviços e melhorar nossa imagem, mas não podemos contar com um departamento de marketing para nos auxiliar. E aí os usuários concluem que a biblioteca é ruim porque as bibliotecárias- que para eles são aquelas senhoras que guardam os livros na estante ou fazem o empréstimo – são todas umas incompetentes. Olá, espartanos, vocês ainda estão por aí?

Bibliotecas nunca são prioridade real em nenhuma instituição, por mais que se diga o contrário o tempo todo. Bibliotecas não têm presença forte nas comunidades, não fazem parte do cotidiano da maioria das pessoas, não têm a importância que deveriam ter na sociedade. Se todas as bibliotecas fechassem amanhã, é óbvio que haveria reação, porque existem boas bibliotecas e pessoas que as frequentam. Mas se forem minguando e acabando aos poucos, sem alarde, muita gente nem vai se dar conta, porque nem sabe o que é uma biblioteca.

O artigo do The Guardian traduzido e publicado aqui pelo Moreno Barros sobre bibliotecas ressurgindo das cinzas trata de culturas nas quais as bibliotecas sempre foram importantes. Onde se “entremearam no tecido da vida cotidiana”, nas palavras do autor. Aqui não me parece que seja assim. Nossa história é diferente da desses países educados e cultos que nos colonizaram, exploraram e ajudaram a implantar por aqui ditaduras assassinas para nos manter colonizados e explorados.

Sim, sou pessimista, mas não acho que seja impossível virar o jogo. Existem boas ideias em circulação, como demonstram os textos publicados neste bravo Bibliotecários sem Fronteiras.

Então, estranhos que aqui passam, termino com a palavra de ordem que sempre me manteve em pé, mesmo não acreditando que a vitória seja certa: a luta continua.

PRESSFIELD, Steven. Portões de fogo: um romance épico da batalha das Termópilas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

SCHWARCZ, L. M. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo : Companhia das Letras, 1998.

A foto do Monumento a Leônidas é de Carlos Blanco, publicada no Flickr. http://www.flickr.com/photos/crlsblnc/5650417261/


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