Os bibliotecários em essência – tréplica

Caro Tiago

Desculpe o excesso, mas achei oportuno aproveitar a oportunidade…

Eu não gosto de discussões que são criadas a partir de provocações e essa é uma das minhas implicancias… Me desculpe, mas acho que isso poderia ser feito de outro modo, mas vamos prosseguir. A dúvida dele é a seguinte:

Partilho plenamente sua reserva quanto a discussões começadas com provocações. Elas não me atraem particularmente porque são, em geral, tanto superficiais quanto pessoais e irritadiças. Por isso é preciso ter sempre em mente o *contexto* de uma dada afirmação. Aquelas minhas palavras que Moreno postou em seu blog e republicou aqui no BSF eram parte de uma discussão específica. Não vi problema algum em terem sido recortadas e feitas públicas porque, primeiro, Moreno pediu-me licença e, segundo, porque sua idéia era justamente incitar alguma discussão. Apenas observo que, uma vez que nos encontremos com um caso desses (uma provocação descontextualizada) ou lhe respondemos na mesma medida (pessoal mas despretensiosa e livremente) ou perguntamos ao autor o que enfim queria ele dizer com o que disse para que possamos responder mais seriamente.

Dito isso…

AL: < < Mas… a dúvida que tenho é esta: face à natureza dos estudantes/profissionais, professores/pesquisadores, área/instituições, o que as iniciativas com foco em biblioteconomia têm a contribuir? Elas são necessárias? Elas valem a pena? Elas têm público? Elas terão retorno? >>

Históricamente, a biblioteconomia nasceu de uma necessidade, assim como a maioria das profissões e áreas de conhecimento. A nosso era a necessidade da sociedade em preservar o conhecimento criado por ela para uso futuro. Essa necessidade mudou muito devido a mudança da própria sociedade, mas a essência é a mesma. Volto depois ao assunto…

É irrelevante para o seu texto, mas oportuno lembrar que há diferentes necessidades que motivam o surgimento de diferentes aspectos da vida humana – e isso aponta uma brutal diferença da natureza desta atividade. As artes (por exemplo, música e literatura) são uma necessidade humana motivada por razões muito diferentes da medicina, da política ou da astronomia, outras atividades humanas. Especificamente as *profissões* têm necessidades próprias. Isso só para lembrar que a Biblioteconomia nasceu de necessidades pontuais quanto a um problema de *organização* (muito mais que de preservação, um aspecto já secundário) e é essencialmente uma profissão (uma técnica), não uma ciência (que poderia ser tomada como sinônimo de “área do conhecimento” e como é comumente referida).

Eu particularmente sempre voltei a minha formação para a tecnologia, por gosto, e não concordo que ajudaria mais sendo um analista de sistemas. Porque?

Não sei se conscientemente, mas você mudou completamente de assunto, e isso faz diferença. O parágrafo meu que você começou por apontar para criticar referia a dois problemas: um quanto à relevância da Biblioteconomia para a sociedade (mas não enquanto profissão e sim, justamente, como “área do conhecimento”) e outro quanto à relevância de iniciativas inovadoras nesta área voltadas para seu próprio público (estudantes, profissionais e professores). Mas você passou aqui a escrever sobre um outro trecho, que referia a outra idéia: a de que uma parte considerável, senão a maior parte (quão maior está em aberto) dos que ingressam na área de Biblioteconomia não estão procurando por Biblioteconomia.

Por que não lidamos com a informação para conhecimento da mesma maneira que lidamos com a informação para negócios. O conhecimento exige diversos outros atributos como: estimulação, capacitação, relacionamento, estimulação da criatividade, etc.. que não é possível somente em um pensamento racional e lógico, que normalmente caracteriza o profissional de tecnologia.

Se bem a entendi, esta diferenciação é circunstancial. Analistas de sistemas lidam com informação de diferentes modos, tanto quanto (senão mais que) bibliotecários. Depende apenas da natureza do sistema que estão a desenvolver – pode ser tanto para negócios quanto para “conhecimento” (deixando de lado a questão de que “negócios” tanto necessitam quanto são, em si, conhecimento). Para os negócios é igualmente necessário estímulo, capacitação, relacionamento, criatividade etc. De outro modo, não haveria analistas de sistemas no MIT, na NASA e mundo afora.

Na Biblioteconomia, conhecimentos que aprendi na faculdade como estudos de linguagem e comunicação (não somente textual, que fique claro) e metodologias em relação a ciência, estudos de usuários da informação e mesmo as de representação (temáticas e descritivas), além é claro das disciplinas de ação cultural, administração, projetos e museologia, pelo menos no nosso caso, permitem ao estudante de biblioteconomia ter uma visão holistica de todos os processos que envolvem o conhecimento e uso da informação e por isso nos permitem pensar em modelos teóricos que podem criar soluções para a sociedade a partir da identificação das suas necessidades e com isso atuamos ativamente da construção da sociedade e não somente na execução de atividades determinadas de modo passivo. É claro que não são todos os profissionais que desenvolvem essas habilidades, mas pelo menos a oportunidade para tanto eles tiveram.

Você nota logo, Tiago, que “não são todos os profissionais que desenvolvem essas habilidades”. Se pensar nos motivos notará também que, curiosamente, poucas dessas atribuições são “biblioteconômicas” – quer dizer, são uma contribuição *da* Biblioteconomia. Na verdade, é o inverso: elas contribuem *para* a Biblioteconomia. “Estudos de linguagem e comunicação” são tema da Lingüística e da Comunicação (quiçá da Psicologia ou mesmo Neurologia); “metodologias em relação a ciência” são temas de filósofos, historiadores e sociólogos; “estudos de usuário” são feitos por praticamente todas as áreas de nível superior; “ação cultural” é generalista e abarca profissionais de virtualmente quaisquer áreas, assim como “administração” e “projetos”. Ficamos com Museologia que, curiosamente, é uma área à parte da Biblioteconomia e “representações temática e descritiva”.

Ainda assim, nada de especial. Indexação, Classificação e Catalogação são passa-tempo de várias áreas do conhecimento e de modo algum exclusividade da Biblioteconomia. Taxonomistas são (geralmente)biólogos altamente especializados que, em suma, trabalham precisamente com isto. Acontece que taxonomistas não são autoridade inconteste em “representações temática e descritiva” simplesmente porque as representações que fazem são *particulares*, ou seja, são delimitadas em princípios, objetivos e métodos. Não pretendem representar tudo, apenas algumas coisas, de um determinado modo, para certo fim. O mesmo com bibliotecários.

O problema me parece estar numa crença bastante comum entre os bibliotecários segundo a qual os seus passa-tempos seriam, de alguma forma, “necessidades universalizáveis mas universalmente desconhecidas”, quero dizer, que todas as áreas somente estão esperando para aprender com eles o que vêm a ser indexação, classificação e catalogação para então assistirem a uma tremenda evolução de suas pesquisas. Não estão. Via de regra, todas as áreas que têm nesses passa-tempos atividades primárias *já* as desenvolvem. À sua maneira (o que também quer dizer, “segundo suas necessidades”).

Isto não é absolutamente o mesmo que dizer “a Biblioteconomia não tem contribuição a dar”. Me parece que tem. Inclusive com respeito a “representações temática e descritiva”. Mas esta é uma discussão própria; basta apenas esclarecer que os bibliotecários não têm razão nenhuma para crer que são os únicos no mundo a conhecer e empregar os conhecimentos e técnicas envolvidos nos processos de indexação, classificação e catalogação.

Mas voltando ao papel na sociedade e considerando a sociedade atual, um das principais necessidades continua sendo a preservação, só que desta vez se altera a forma de como preservar. Devemos selecionar o que deve ser preservado e conservar o acesso a essas fontes. Além disso, em um contexto de abundância, essa seleção é crucial, e os critérios de seleção devem ser modificados… E mais importante do que preservar, é fazer com que esse acervo preservado se torne um instrumento da sociedade…

O Tiago está se fiando em *um* fator exclusivo como tendo originado e orientado a Biblioteconomia: a preservação. Há pelo menos mais dois pontos fundamentais para ela: um é a ‘organização’ (que na verdade é o seu fator fundamental, não a preservação), o outro (que, contudo, não está ligado a ela por razões históricas) é a ‘disseminação’.

Quanto ao problema da seleção: é uma questão ampla e complexa o papel do bibliotecário como avaliador (do que organizar, disseminar e preservar). A ExtraLibris publicou um excelente artigo sobre isso: “Crítica da informação: onde está?”, de Jack Andersen ( http://academica.extralibris.info/teoria_da_info/critica_da_informacao_onde_est.html).

Mas estamos fugindo quase que completamente à questão já aqui. O que eu dizia é que uma parte consideravelmente grande dos egressos em Biblioteconomia não está buscando por Biblioteconomia – o Tiago concorda ou discorda? Avancei alguns motivos, mas claro, são apenas alguns. Um dos resultados disso seria o pouco caso dos profissionais e professores para com a *Biblioteconomia* e o seu aparente encanto (dado seus envolvimentos) com outras áreas: tecnologia da informação, “ciência da informação”, empregos públicos sem mais envolvimento com as instituições e órgãos em questão, docência sem mais envolvimento com atividades didáticas e as instituições em questão etc. etc. O Tiago concorda ou discorda?

A formação de bibliotecários hoje reflete a minha “provocação”: forma-se administradores incompetentes, intelectuais diletantes, cientistas frustrados, animadores culturais românticos, pedagogos ideologizantes e “estudiosos” e profissionais congêneres aos rodos, mas quase nenhum bibliotecário.

Agora note: já na “provocação” eu fazia questão de não desqualificar *todos* em qualquer dos apontamentos. A Biblioteconomia tem relação, afinal, com todas essas áreas, e é saudável e necessário que mantenha relações com elas, inclusive com migração recíproca de estudiosos e profissionais.

Acontece que “interdisciplinaridade” não é desculpa para superficialidade, vale-tudo conceitual e metodológico ou apenas outro meio de financiamento de pesquisas. Interdisciplinaridade é coisa séria. Dá muito trabalho adquirir formação adicional em alguma área que não a primária. Deixe-me dar um exemplo que acabo de citar noutra discussão (também particular): para pesquisar sobre ‘Teoria da informação’ não basta ter lido três quatro livros e citar Shannon, Weaver e cia, é preciso uma formação algo robusta em Lógica, Matemática e Física que provavelmente 80% dos que trabalham com “ciência da informação” no Brasil não têm.

A meu ver, falta na Biblio impor velocidade nas mudanças (que são complexas), mas isso não me deixa com uma visão totalmente negativa do processo…

Uma visão “totalmente negativa do processo” só poderia fazer com que o gajo migrasse de área e profissão. Não é nosso caso, é? Veja: bibliotecários eventualmente trabalham com TI. Não é regra, mas é uma linha de atuação promissora a ser ainda mais explorada do que é. Mas deve ser explorada com seriedade. O que acontece é que boa parte das escolas de Biblioteconomia, hoje, não oferece formação adequada nem nas matérias biblioteconômicas, nem nas adicionais – e o cidadão sai não sabendo se é um analista de sistemas ou um bibliotecário, para ficarmos neste exemplo (e se não souber mesmo o que quer da vida, provavelmente terminará dr. em ciência da informação…).

O Tiago é exemplo de excelente bibliotecário que trabalha com tecnologia. Felizmente, há outros. Mas eles, no todo, formam uma ínfima minoria da parcela de bibliotecários que tem alguma relação com tecnologia – e, ainda assim, fazem trabalho de bibliotecário. Do universo geral a maioria não faz um trabalho competente nem como bibliotecário nem como analista de sistemas, ou passou totalmente a atuar com análise de sistemas porque, enfim, nunca teve nada com Biblioteconomia.

A relação custo / benefício da área para a sociedade é clara. Criar e manter bibliotecas é um custo muito alto para a sociedade, mas esse custo seria elevado a potencias exponenciais se não houvessem bibliotecas e informação compartilhada (entendendo custo aqui como custo financeiro e também custo de oportunidade, pois impedindo o acesso a informações, impede-se consequentemente a criação de novas informações). Na web, essa relação é mais clara, pois elas atingem um publico maior… por isso temos que invadir esse espaço e esse é o nosso desafio: entender que a sociedade mudou e temos que participar ativamente desta mudança!

Este parágrafo serve de exemplo ao que queria dizer com a crença bibliotecária das “necessidades universalizáveis mas universalmente desconhecidas” – *por que* precisamos “invadir” esse espaço (ou qualquer outro)? Que poder mágico é este que os bibliotecários teriam de arrumar qualquer coisa, e que incompetência generalizada é essa que as outras áreas têm (todas elas, aparentemente) de não conseguir resolver seus problemas e necessitar (embora curiosamente não saibam disso) de bibliotecários?

Talvez a sociedade esteja mudando tanto que precise *menos* de bibliotecários. O quê, cometi um pecado? Ora, isso já aconteceu a várias áreas do conhecimento na história, voltará a acontecer a outras inevitavelmente no futuro. Se a Biblioteconomia tem realmente algo com que contribuir (não apenas enquanto profissão, bibliotecários em *bibliotecas* continuarão a existir por um longo tempo) não precisa ficar a se afirmar e auto-afirmar tão insistentemente: basta fazer seu trabalho e divulgar seus conhecimentos. Nenhuma área do conhecimento que se preze faz de seus conhecimentos segredos esotéricos acessíveis somente a pós-graduandos nela própria – se nem mesmo a Teoria M dá-se a esse luxo, por que afinal os bibliotecários devem esperar que seja assim para com eles?

Agora, quanto ao comentário da Terezinha:

“Discordo completamente de sua linha de pensamento, porque eu sou uma Bibliotecária, que fiz minha opção pelo curso aos 12 anos de idade, quando estive pela primeira vez em uma biblioteca. Mas a vida me levou a fazer um curso de Licenciatura e Bacharelado em Matemática, devido ao trabalho que exercia. Somente após 25 anos de trabalho, inclusive me aposentei, que tive a felicidade de realizar o grande sonho de minha vida, fiz vestibular para Biblioteconomia e passei. Hoje estou formada a 3 anos, e adoro minha profissão, faço tudo com muito amor e carinho. A biblioteca para mim é um lugar sagrado, onde se respira um conhecimento de milhares de cérebros pensantes que passaram por este mundo. Cada obra lida nos transporta a um mundo diferente, é um verdadeiro passeio pelas letras.”

Quem bom para a Biblioteconomia! Para a Terezinha nem se diga…

Mas a Terezinha é *um* caso. Há registro de dois ou três outros em que formados noutras áreas migraram para a Biblioteconomia. Tanto melhor. Só que isso não tem nada a ver com que escrevi.

Quanto à visão da biblioteca como um “lugar sagrado”, eis um de nossos piores vícios. Coisas “sagradas” não admitem questionamento, nem admitem melhoramento, são reveladas – nunca construídas – e por isso não podem – não precisam – ser melhoradas, são imutáveis.

É exatamente tudo o que não se poderia esperar que fosse uma biblioteca (ou o livro). Antes, devia-se mostrá-las mais como ágoras ou laboratórios: lugares onde o conhecimento é testado, onde ele é proposto só para poder ser posto à prova, onde tudo pode mudar amanhã (inclusive os livros, inclusive as bibliotecas – inclusive os bibliotecários), onde tudo depende que mais gente se interesse por eles e assuma uma parte do trabalho que nos cabe (a nós, e a nenhum poder sobre-humano revelador) em integrar o mundo antigo (as ciências, as artes) ao novo, em construção e avanço contínuos.

Saudações
Alex.


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