Por que um projeto editorial seria interessante para bibliotecas públicas e comunitárias? Como poderia contribuir para a relação da biblioteca com a comunidade e dos indivíduos e grupos da própria comunidade entre si?
Poucos duvidam do valor dos livros e da leitura na transformação das vidas das pessoas. Seja através de um programa formal de educação, seja por interesse pessoal autodidata, livros, revistas, bibliotecas, enfim, a leitura ocupa um espaço de destaque no imaginário de como se aprende alguma coisa.
As bibliotecas públicas e comunitárias (as demais também, até certo ponto) têm por missão principal a disseminação dos livros e o estímulo da leitura.
Fazem isso através de suas coleções, formadas a partir do estudo dos interesses, hábitos e outras características que formam os perfis de seus usuários e também por meio do serviço de referência, marketing, cursos de formação de leitores, eventos e outras atividades desenvolvidas, a partir desses estudos, para aproximar a comunidade dos livros e da leitura.
Fazem isso para oferecer aquilo que o usuário quer e precisa, assim respondendo às 3 primeiras leis de Ranganathan e, por esse trabalho, são as instituições culturais mais lembradas quando se fala em leitura. Entretanto, algumas questões podem ser colocadas ao tipo de contato e serviços oferecidos pelas bibliotecas às suas comunidades:
Quem decide o que o usuário ou a comunidade precisa? Até que ponto nossos estudos de comunidades conseguem identificar desejos e necessidades? Com que frequência superamos o questionário e a análise de dados do censo para determinar esses valores? Quanto de contato real com as pessoas das comunidades para aprofundar as informações quantitativas? E com as pessoas que não frequentam a biblioteca?
Mais importante (e com mais potencial revolucionário): Supondo que realmente sabemos os interesses e desejos de nossos usuários, que os estudamos ao nível do convívio, da conversa, será que os livros que selecionamos correspondem a esses interesses e desejos? Será que são o suficiente?
A verdade é que, por mais que nos esforcemos por compreender o que o usuário pensa e o que ele quer, ainda assim seremos pessoas tentando adivinhar o que os outros precisam e oferecendo acervos e serviços baseados nessa presunção.
Uma biblioteca que planeja seus recursos tendo por base apenas os estudos de usuário, por mais fiéis que sejam, e apenas seleciona um acervo entre as opções oferecidas pelo mercado editorial, está fadada a funcionar como o panóptico de Foucault: um centro que exerce controle a partir da informação que irradia para a periferia* .
A cultura assim difundida não leva em conta a visão de mundo, as criações e potenciais existentes em cada comunidade e em cada indivíduo isoladamente. E isso se torna mais verdadeiro conforme nos aproximamos das periferias das cidades, da pobreza e da exclusão social.
Nesses redutos, onde a presença da cidadania, na forma de serviços públicos, de participação nos processos políticos, e mesmo de condições básicas de existência é precária, produz-se muita cultura, a cultura verdadeiramente popular, riquíssima! Mas essa cultura fica restrita aos becos, vilas e favelas, não é conhecida e nem se demonstra interesse em conhecê-la nos círculos menos precarizados da sociedade. É uma cultura que não tem voz na mídia, que não tem vez nos centros culturais. De tão calada, nem mesmo os atores que a protagonizam valorizam o que fazem. E é justamente nesses locais em que as bibliotecas são mais necessárias. Exatamente para resgatar a identidade, a confiança e a autodeterminação desses sujeitos, através da ação cultural.
Para que uma revolução, que possibilite às pessoas a garantia efetiva de seus direitos e condições de igualdade, aconteça, é necessário que todos e cada um tenham consciência de seu lugar no espaço e no tempo. No espaço, sabendo situar-se em todos os níveis, da comunidade local ao contexto global, de forma política cultural e econômica. E no tempo, reconhecendo a história de sua própria vida, das pessoas de sua família, do seu bairro, cidade, estado, país, continente, mundo… Saber reconhecer o contexto em que se está inserido, os eventos que o levaram a tal situação e as relações entre sua comunidade e as outras forças em jogo é condição sine qua non para o exercício pleno da cidadania. E para adquirir essa consciência e tornar-se então governante de seu próprio destino, o indivíduo precisa reconhecer e valorizar sua própria identidade cultural.
Isso implica reverter o processo elitizante da cultura. Nas periferias, onde a cultura popular é efetivamente produzida, a ideologia dominante distorce a visão dos indivíduos sobre sua própria identidade e vivências, fazendo com que considerem seus próprios feitos como desimportantes ou mesmo repudiem completamente a própria cultura, já que essa não é valorizada, não está nas lojas, nem na televisão, nem nos jornais.
O reconhecimento do valor das experiências de cada um é necessário para a existência de um ambiente criativo e estimulante, apto a resgatar a auto-estima da comunidade e capaz de transformar aquilo que hoje é considerado marginal em um ativo cultural complexo e próspero e, final e idealmente, conduzir à libertação cultural dos sujeitos.
A ação cultural nas bibliotecas, geralmente é vista como a promoção de atividades culturais com o intuito de difundir a “cultura”, tornar as pessoas “cultas”, “levar” até o público-“alvo” os prestigiados valores culturais da sociedade. As atividades são cursos, clubes de leitura, palestras, feiras de troca, peças teatrais, espetáculos de música, entre outras. Todas essas atividades são excelentes para atrair público, divulgar os serviços e ampliar a relação da biblioteca com a comunidade. Elas comprovadamente causam impacto nos hábitos de uso da biblioteca e de leitura dos usuários.
Mas não cruzam a linha da cultura estabelecida. Com raras exceções, essas atividades são planejadas e executadas por pessoas de fora da comunidade. São convidados escritores para falar sobre seus livros, artistas para cantar suas músicas, professores para ensinar suas especialidades, mas, muito raramente, essas pessoas vivem e compartilham os valores e a identidade da própria comunidade. Uma biblioteca popular que realmente queira promover a ação cultural não pode se limitar a divulgação do acervo e a “trazer atividades”.
É preciso enxergar os ativos da própria comunidade, enxergar as pessoas como o acervo. Uma vez li sobre uma ação na qual frequentadores de uma biblioteca sentavam diante de uma pessoa, entre algumas que se podia escolher, e essa pessoa contava a sua história (se alguém lembrar do link, posta nos comentários e eu atualizo depois). Um acervo de pessoas! Mas como seria isso?
Numa proposta de biblioteca popular, os livros poderiam ser as cabeças das pessoas e o acervo a comunidade. O catálogo representaria a ação cultural nessa alegoria. Então catalogamos “cabeças”, tornamos “recuperável” o material que surge espontaneamente no cotidiano das pessoas, buscamos as associações entre essas e outras ideias, registramos, preservamos e promovemos o acesso a essa coleção.
Cada vila, cada favela tem sua história, tem seus velhos griôs, contadores de história**, verdadeiros compêndios de sabedoria popular, cheios de causos e lendas de sua juventude (e das múltiplas juventudes anteriores que, pela oralidade, transmitiram a eles o compromisso de contar). Tem seus moradores antigos, que estavam lá na primeira invasão, que têm fotografias e histórias para contar sobre esse processo.
As coleções também podem ser formadas pelo padre; pelo pai de santo; pela benzedeira e pela parteira; pelo clube de mães; pelo presidente da associação de moradores; pelo time de futebol de várzea, que nunca ganhou um campeonato, mas conta com uma torcida fiel; pelo MC e pelo DJ; pelo grafiteiro; pela costureira; pela cozinheira que carrega seu livro de receitas, passadas a ela por sua avó, que foi escrava; pelo filho do carteiro, que desenha bem…
Assim, catalogamos, indexamos e buscamos (um serviço de referência) material que complemente e reviva essas narrativas. No caso dos griôs: a música da época de suas histórias, fotografias antigas dos lugares, a literatura, as roupas, os relatos de outros menestréis, etc.
Essa é a matéria que deve compor as bibliotecas populares. Os livros nas estantes devem ser o espelho dessas vivências, que são o verdadeiro acervo. Assim valorizamos o que surge espontaneamente (a verdadeira cultura) e não empurramos algo que muitas vezes é até antagônico aos interesses das comunidades.
O resultado esperado é a valorização dos indivíduos pelo que já são e não mais como seres que precisam atingir um modelo de realização que está distante (não raro inalcançável) e é indiferente a eles.
Nenhuma dessas ideias é realmente nova. Diversos pensadores e educadores, como Ferrer y Guardia, João Penteado e Paulo Freire já lançaram propostas semelhantes. O conceito de ação cultural, como defendido por Luís Milanesi, compartilha desses ideais de cultura popular e do papel das bibliotecas nesse contexto.
Muitas iniciativas já obtêm resultados impressionantes partilhando essas ideias. Dentre essas, destaco a que considero mais próxima do modelo ideal de biblioteca popular: as bibliotecas parque. O conceito, maravilhoso em múltiplos aspectos, surgiu na Colômbia e coloca a biblioteca no centro do projeto urbanístico dos bairros e, mais importante, posiciona bibliotecas muito bem equipadas no coração de zonas de risco social. O Brasil já tem suas primeiras experiências do conceito, nas favelas do Rio de Janeiro. Na favela de Manguinhos o espaço foi rapidamente apropriado pela população, que utiliza e conserva o prédio, os equipamentos e os livros.
Mas então, como identificar, incentivar, registar, editar e publicar esse acervo riquíssimo? Primeiramente é necessário que o bibliotecário deixe o conforto de suas atividades tradicionais e inicie o flerte com a antropologia e com as relações públicas, que se empenhe em participar das entidades comunitárias: associações de bairro, de mães, paróquias, congregações, terreiros, clubes, escolas, etc, e nesses ambientes identifique os potenciais novos “livros” para o acervo.
A partir desse mapeamento, pode se projetar atividades, entrevistas, apresentações. Convidar artistas (de preferência da própria comunidade) para ilustrar a história de algum morador, registrar em vídeo, transcrever em texto. Muitos escritores, podem se interessar por registrar as narrativas recolhidas, universidades podem incentivar programas de extensão para auxiliar nos projetos.
As eventuais publicações dos materiais coletados podem ser financiadas por meio de leis de incentivo, ou (melhor ainda!) de maneira autônoma, por crowdfunding ou arrecadação com eventos e doações espontâneas. E publicações não precisam ser necessariamente caras, podem ser feitas de forma artesanal, com material reciclável, inclusive envolvendo a própria comunidade no processo de confecção dos livros.
Nas próximas postagens pretendo explorar o universo dessas práticas. Abordar o fenômeno das editoras cartoneras, os fanzines e outras modalidades editoriais que podem inspirar ações culturais efetivas para nossas bibliotecas. Conto com o apoio dos leitores para sugestões e críticas!
* Não estou propondo que essa cultura, ou esses livros, não tem valor. Mas não deveriam ser o único valor considerado.
** Preferi aqui o termo “contadores de história” a “contadores de estórias” por acreditar que as possibilidades semânticas do primeiro destaquem a relevância do resgate histórico presente nas narrativas desses menestréis contemporâneos.
A imagem do post é dos livros da Eloísa Cartonera, de Buenos Aires
8 respostas para “Por que desenvolver atividade editorial na biblioteca”
Derbi! excelente iniciativa, fazia tempos que aguardava algum bibliotecário manifestar essas questões. Participar das políticas públicas de cultura, resgatar os griôs ou seja, sem ser redundante, mas, o grande conhecimento está na cabeça das pessoas.
Sobre o que você relata em “empréstimo de pessoas”, uma amiga minha foi a Amsterdam, Holanda, e para você conhecer a cidade, você “empresta” alguns tipos de profissionais que te auxiliam a explicar a cidade. No caso dela, que estava com uma arquiteta, “emprestaram” um arquiteto que lhes deu a conhecer toda a cidade sob este ponto de vista.
Valeu Clau! 😀
Era em um país desses essa parada aí que eu vi, mas era um pouco diferente, a pessoa sentava contigo num banco de praça ou dentro da biblioteca e tu conversava com ela, ou ela te contava alguma história, algo assim.
Achei o máximo esse que você mencionou!! É muito bom conhecer cidades acompanhado de alguém que realmente entende o lugar!!
Há de considerar essa atividade no rol de serviços das bibliotecas.
Nos últimos meses tenho acompanhado alguns dos Saraus periféricos de São Paulo e o que ficou em evidência? Eles mesmos estão publicando sua produção.
Ou seja, os Saraus que deveriam ter a biblioteca como ponto de apoio e desenvolvimento, se desenvolvem distante dela, e ainda distante dela também criam seus selos editoriais.
Mas não adianta reclamar, o caminho agora é se aproximar destas experiências e tentar demonstrar os benefícios que os espaços das bibliotecas públicas podem trazer a essas iniciativas. O primeiro e principal deles é a permanência e sustentabilidade, uma vez que dificilmente uma biblioteca pública é fechada (não penso estarmos no paraíso, mas mesmo caindo aos pedaços e abandonadas elas estão aí!).
Deixo como exemplo dois Saraus que criaram seu selos:
Sarau do Burro e seu Selo DoBurro
https://www.facebook.com/doburro
Sarau Elo da Corrente e seu Elo da Corrente Edições
http://elo-da-corrente.blogspot.de/p/quem-somos.html
Penso que as bibliotecas, em conjunto com seus usuários e escritores locais possam desenvolver isso. No caso do Selo DoBurro, eles obtiveram apoio financeiro da própria prefeitura de São Paulo para publicarem 10 títulos.
Cabe lembrar o ótimo jornal, CANDIDO, da Biblioteca Pública do Paraná em Curitiba. É um mega jornal, mas porque não ter um jornal menor e a partir dele desenvolver livros dos autores de destaque?
http://www.candido.bpp.pr.gov.br/
A Biblioteca Mário de Andrade publica há muito tempo a sua Revista, cujo último número é bem bom (http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bma/noticias/?p=13611), e a nova direção pretende realizar outras publicações, inclusive fac-similes de obras raras e especiais do seu acervo. E em breve, pretende lançar um blog que poderá ter contribuições dos leitores também.
Enfim, certamente há outras instituições desenvolvendo atividades editoriais, mas elas precisam ser conhecidas e financiadas, por isso, simbora escrever projetos galera!
Ótimo post Célvio!
Abs,
William
Excelente comentário Okubo!!
Sobre os selos, eu acho a coisa mais maravilhosa do mundo que eles estejam criando seus próprios selos. Penso que os processos de produção devam ser o mais descentralizados o possível. O ideal é que sejam mesmo uma iniciativa comunitária espontânea, local ou por grupos de interesse. Assim se tem a certeza absoluta de autonomia total das edições e processos de seleção mais ajustados aos grupos.
Também acho importante a biblioteca atuar como consultora desses projetos apontando soluções editoriais (melhor papel, normas para publicação, elaborando a ficha catalográfica e isbn…) e auxiliando em dúvidas, sempre que solicitada
Outro ponto que vejo como estratégico para a atuação da biblioteca nesses casos é na distribuição desses produtos. Promover tiragens do que foi feito nos coletivos, ajudar a inscrever os projetos em editais de financiamento, expor o material nos eventos, e por aí vai.
Mas isso serve bem nesses casos, como o dos saraus que tu citou, nos quais já há algum (bom) nível de organização. Mas sabemos que esses grupos, embora estejam crescendo, ainda são poucos e toda a força cultural das comunidades continua latente e inconsciente de si.
Para esses outros casos, o papel da biblioteca, no meu entendimento estaria na descoberta e fomento a essas iniciativas, um agregador quando não existe nada. Da mesma forma como colocamos livros sobre o mesmo assunto na mesma estante quando classificamos e os tornamos visíveis através do catálogo e do serviço de referência, podemos agregar as pessoas e fomentar a autogestão dos grupos, tornando-os “visíveis para si próprios”.
Sobre os saraus, cara, como eu fiquei impressionado com Sampa quando estive aí em novembro!! É a capital mundial dos saraus!! 😛
Fui convidado para um, mas não pude ir pois estava num colóquio naquele horário. O nome do lugar era Suburbano Convicto, no Bexiga. Conheci o Fino Dflow que frequenta lá, ele faz hip hop com poesias do Manuel Bandeira e participa de competições de Slam Poetry, muito bom!! A Dora foi e curtiu bastante! Quando eu retornar a Sampa quero que tu me leve nesses saraus aí!!
Cara, concordo com suas ponderações.
Seria ótimo ter você trabalhando em algum sistema de bibliotecas públicas…. oxalá em SP, mas não abre concurso aqui.
Voltando para SP te levo para visitar alguns saraus e Slams de poesia (estão bombando por aqui!).
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[…] dois textos que gostei bastante: um sobre as possibilidades do mercado editorial e outro sobre projetos editoriais em bibliotecas. Textos antigos, mas com questionamentos […]