O paraíso de Borges

Uma das citações mais queridas dos bibliotecários, bastante divulgada pelas redes sociais sem a fonte, é uma frase de Jorge Luis Borges sobre bibliotecas:

“Sempre imaginei o paraíso como um tipo de biblioteca”.

Quando leio isso costumo dizer que eu também imaginava, até começar a trabalhar em uma. Sim, porque a ideia romântica que as pessoas que gostam de ler têm de bibliotecas raramente coincide com a realidade da instituição biblioteca, que não é feita apenas de leitura e saber, mas de funcionários nem sempre simpáticos, estantes nem sempre bonitas, regras e regulamentos nem sempre razoáveis, administradores nem sempre competentes e verbas geralmente curtas. Por isso sempre imaginei que Borges não estivesse pensando na instituição, mas apenas na ideia de uma bela coleção de livros à espera de leitores vorazes.

Aí resolvi ir atrás da fonte, buscazinha básica que as pessoas que compartilham a frase no Facebook bem que poderiam ter feito, já que não dói nada.

A frase é um dos versos do “Poema de los dones”, que Borges escreveu em 1955 quando, já cego, foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.

Nadie rebaje a lágrima o reproche
Esta declaración de la maestría
De Dios que con magnífica ironía
Me dio a la vez los libros y la noche.
[…]
Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.

Borges repetiu frase em 1977 durante uma conferência no teatro Coliseo de Buenos Aires sobre o tema da cegueira, recordando a ironia de sua situação: viver cercado por milhares de livros que não podia mais ler.

Poco a poco fui comprendiendo la extraña ironía de los hechos. Yo siempre me había imaginado el Paraíso bajo la especie de una biblioteca. Otras personas piensan en un jardín, otras pueden pensar en un palacio. Ahí estaba yo. Era, de algún modo, el centro de novecientos mil volúmenes en diversos idiomas. Comprobé que apenas podía descifrar las carátulas y los lomos. (BORGES, p. 53).

Mas será mesmo que o gênio cego sempre associou as bibliotecas ao paraíso?

Na biografia de Borges escrita por Marcos-Ricardo Barnatán, encontrei o seguinte relato. Em 1937 o escritor, premido por problemas financeiros, teve que arrumar emprego na Biblioteca Municipal Miguel Cané, uma biblioteca de bairro em Buenos Aires. De acordo com o autor, “os nove anos em que permaneceu no cargo, que além subalterno era muito frustrante porque consistia em catalogar livros, foram uma autêntica humilhação para Borges.” (BARNATÁN, p. 296).

A biblioteca tinha excesso de pessoal, com 50 funcionários fazendo o trabalho que 15 dariam conta. Borges catalogava e classificava, mas pensava que a coleção era tão pequena que o catálogo quase não era necessário. Era só uma coisa complicada inventada pelos funcionários para justificar seu salário.  Mas trabalhou “honestamente” em seu primeiro dia, classificando 400 livros, enquanto os colegas classificaram apenas 100.

Pera aí … como assim, Borges? Quatrocentos ou mesmo cem livros num dia é uma produção impossível. O que será que o escritor entendia por classificação? Tirar os livros de uma caixa e botar na estante? E se ele e os coleguinhas vagabundos “classificavam” 500 livros por dia, como é que a biblioteca não precisava de catálogo? Enfim, os indolentes o pressionaram a ficar na marca segura de 103 títulos após o terceiro dia de trampo, para evitar desemprego em massa na Miguel Cané.

Talvez Borges estivesse brincando ou exagerando de forma retórica, mas sem o contexto da história não dá para saber.  Gostaria de tirar a dúvida na fonte original das declarações de Borges, mas o infeliz do Barnatán não sabe fazer citação.  Simplesmente bota o texto entre aspas e pronto, temos que adivinhar de qual das dezenas de livros da bibliografia tirou o relato sobre a feroz atividade de processamento executada na Miguel Cané.

De qualquer forma, foram “nove anos de profunda infelicidade” para o escritor, levando uma “existência servil e miserável”. O sofrimento era agravado pelo fato de que, para Borges,  sua vida cotidiana “anônima e deprimente” parecia  estar em desacordo com a reputação literária bastante sólida  que já possuía na época.  (BARNATÁN, p.  296 – 297).

Nada mais longe da ideia de paraíso, me parece.

A vingança de Borges teria sido usar o tempo roubado ao trabalho humilhante de “bibliotecário” para escrever. Um dos contos escritos nessa época foi A biblioteca de Babel, para Barnatán ( p. 305)  uma “metáfora pesadelesca” da Miguel Cané. Talvez.

Eu, particularmente, acho que esse conto não tem absolutamente nada a ver com bibliotecas. O que vocês acham?

BARNATÁN, Marcos-Ricardo. Borges: biografia total. Madrid: Temas de Hoy, 1995.

BORGES, Jorge Luís.  Siete noches. Mexico, DF:  Editorial Meló, 1980.

A foto é minha, feita na Oficina Brennand, em Recife, que me fez pensar em Borges.

 

 


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Comentários

2 respostas para “O paraíso de Borges”

  1. Avatar de Carol Kokumai
    Carol Kokumai

    Eu fiquei bem surpresa por esses sentimentos (de quase frutação e humilhação) de Borges perante bibliotecas. Sempre achei que ele fosse um apaixonado pelo mundo bibliotecário.
    De qualquer forma, minha ideia geral de “Ficções” é de que se trata de um livro de pequenos experimentos de desenvolvimento de textos, em que ele tenta, em cada conto, “inventar” uma nova forma de de se escrever uma narrativa (eu gostava particularmente de um em que Borges imagina um conto iniciado pelo seu final, para então seguirmos pelos motivos que levaram àquelas consequências). E a Biblioteca de Babel seria uma metáfora a transposição da literatura com a vida real através da criação de um universo em que pessoas são senhores e dependentes dos livros (o que nos leva a pensar que talvez essa seja a visão que Borges tinha de um bibliotecário). Apesar da temática, não é nem perto de ser o meu conto favorito.
    Gostei muito da abordagem sobre Borges e adoraria que vocês fizessem mais postagem do gênero.

    Beijos
    Carolina Kokumai

  2. Avatar de Gustavo Henn

    O sofrimento foi mais pela situação a que ele foi submetido, de ter uma atividade “não intelectual”, creio eu. Ao longo de seus escritos ele usa muito a imagem da biblioteca como algo fantástico e infinito, acho que assim parecia para ele.

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