Um filme legal

A questão é recorrente em qualquer acervo de filmes.

Eu queria ver um filme legal , o que você me recomenda?

Admito que essa demanda tão inocente me arrancava suspiros de tédio quando mais jovem e menos tolerante. Como diabos, pensava eu, uma pessoa suficientemente instruída e alimentada para chegar à Universidade não consegue escolher um simples filme sem pedir sugestões a estranhos?

Na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde trabalho, temos um bom acervo de filmes, inicialmente formado para atender a necessidades acadêmicas do curso de cinema da Escola e selecionado de acordo com orientação dos nossos professores. O núcleo mais importante do acervo é formado por filmes de Glauber Rocha, Bergman, Fellini, Antonioni, Hitchcock, Buñuel, Kurosawa, Eisenstein, Renoir e outros nomes que fizeram a história do cinema, mas também temos de gente menos conhecida e como menos prestígio acadêmico.

Nossa base de dados é um velho produto criado no velho MicroIsis por esta velha bibliotecária, mas ainda funciona. A catalogação foi caprichadamente desenvolvida para filmes, com ficha técnica bem completa, resumos, indexação por gênero e assuntos e quase tudo o que nossos usuários especialistas em cinema nos pediram. Dá para localizar, por exemplo, todos os filmes brasileiros do acervo produzidos na década de 60 que tenham “políticos” como personagens, ou filmes ambientados na cidade de Paris.

Aí chega o usuário e pede para o atarefado funcionário um “filme legal”. Depois de anos repetindo variações do velho discurso de que “o meu legal pode ser diferente do seu”, em algum momento as velhas desculpas deixaram de fazer sentido. Nem todos cresceram solitários e ressabiados com a humanidade como eu, as pessoas simplesmente enxergam no indivíduo que trabalha com um acervo alguém que tem um repertório maior que o delas e querem sim, por que não, a opinião pessoal dele ou dela. Se não quisessem opinão pessoal não perguntariam para uma pessoa. Ora, se os meninos das antigas videolocadoras buliçosamente ofereciam suas indicações estereotipadas, se o YouTube e a Netflix hoje fazem isso com automática desfaçatez, por que essas bibliotecárias metidas não podem sugerir a porcaria de um filme legal?

segredo

Então, quando uma de nossas atendentes, uma elegante estudante de música, esgotou seu estoque de sugestões e não aguentava mais indicar O segredo dos seus olhos – aquele filme argentino milimetricamente planejado para agradar a todo mundo – para usuários desejosos de ver um bom filme para matar o tempo, resolvi que já era hora não apenas de sugerir um filme legal, mas de criar uma lista de filmes legais. Já era nosso hábito fazer recortes no acervo por assunto, gênero ou propósito e imprimir uma listinha para o pessoal, atendendo a duas demandas históricas dos nossos usuários:  algo impresso para “pegar com a mão” e sugestões de filmes para quem não tem nenhuma necessidade cinematográfica específica. Filmes dirigidos por mulheres, filmes para o Mês da Consciência Negra, obras de grandes diretores de fotografia, adaptações de peças teatrais e Revoluções são alguns dos temas das listas, que também publicamos no nosso blog.

A lista foi elaborada com critérios e método, claro, porque posso ser maluca mas ainda sou bibliotecária. Três pessoas de formações, interesse e idades diversas fizeram as indicações, para assegurar um mínimo de pluralidade ao “levantamento”: os dois técnicos que atendem os usuários de filmes e eu. Combinados o seguinte:

escolher filmes dos quais gostamos bastante;

evitar obviedades excessivas –  indicar aquele filme que todo mundo já viu é chover no molhado;

deixar de lado extremos de violência, medo, sexo ou qualquer outro exagero – quem pede sugestão de filme legal provavelmente não está querendo nada disso;

nada de linguagens muito complexas ou filmes muito difíceis – esse usuário não deve estar em busca de algo como Stalker, de Tarkovskiy  ou Blue, de Derek Jarman.

nada de filmes muito bobinhos – afinal, a biblioteca de uma escola que tem curso de audiovisual não pode partir para a esculhambação.

tentar escolher filmes de gêneros e épocas variados.

Na condição de pessoa mais velha e mais cinemeira do trio, procurei lembrar de filmes que eram MUITO LEGAIS na minha juventude e que hoje pouca gente conhece. Alguém com menos de 50 anos se lembra, por exemplo, de Malpertuis, um filme que arrastou multidões às salas da Mostra de Cinema de São Paulo na década de 1990?

Lizard

A lista ficou interessante e, ao meu ver, bastante diversa. Os usuários gostaram, os funcionários também mas, para minha surpresa, já ouvi mais de um estudante de biblioteconomia afirmar que esse tipo de trabalho jamais seria feito na biblioteca onde estagiam. Chefes caretas não deixariam… É sério isso, pessoal? E eu que pensava ser uma bibliotecária velha e empoeirada. Bibliotecários não podem acrescentar um pouco de imaginação às suas rotinas?

Um coleção de filmes merece ser corretamente indexada por gênero, forma e assunto em suas várias facetas: ações, eventos, personagens, local e época de ambientação etc. Cada filme deve ser analisado como um todo ou em partes, para que cenas ou sequências específicas possam ser recuperadas. Nosso olhar de indexador deve identificar não apenas o que é mostrado, mas também significados mais profundos e conteúdos menos evidentes, se possível. Mas além da abordagem técnica, a criatividade e um pouco de ousadia não fazem mal a ninguém.

Espectadores de filmes, séries e vídeos de gatinhos, entre os quais se incluem nossos usuários e nós mesmos, enxergam conceitos e delimitam categorias que fogem bastante ao que sonha a vã filosofia dos nossos vocabulários controlados. Sim, todos nós buscamos filmes sobre a Revolução Francesa, sobre relações familiares ou violência contra a mulher, com cenas de batalhas navais ou corridas de cavalos, conceitos relativamente fáceis de serem transformados em civilizados descritores. Mas existem demandas mais difíceis de serem atendidas pelos pouco imaginativos sistemas bibliotecários.

Fiz, há alguns anos, uma pesquisa com usuários da coleção de filmes da ECA/USP, para tentar descobrir o que eles entendem por assunto de um filme. O resultado mostra um pouco do que nos falta. Em nossos vocabulários, bases de dados, conjuntos de metadados ou, pelo menos, nas nossas cabeças, precisamos encontrar espaço para categorias como linguagem, técnica ou narrativa cinematográfica, ou para aqueles temas clássicos do cinema que parecem nunca se encaixar na concepção bibliotecária de assunto, ou  mesmo para conceitos não relacionados ao conteúdo do filme, mas ao contexto de produção, exibição etc.

Se alguém quiser conhecer os detalhes dessa pesquisa, o relato está lá no meu blog, no post Sobre o que é esse filme. Ainda vou voltar mais vezes ao tema (aguardem os próximos capítulos).

 

 

 


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Comentários

19 respostas para “Um filme legal”

  1. Avatar de Bosco Barroso
    Bosco Barroso

    Parabéns pela ideia e pelo texto. Assim, é possível entender o que é Biblioteconomia e o que faz um bibliotecário. Vá em frente!!!

    1. Avatar de Marina Macambyra
      Marina Macambyra

      Obrigada! Vou tentar continuar em frente.

  2. Avatar de Jaqueline Bispo
    Jaqueline Bispo

    Muito bacana a ideia e a iniciativa.
    O trabalhar com acervo audiovisual deve ser maravilhoso!
    Quero copiar e adaptar à biblioteca tradicional.

    1. Avatar de Marina Macambyra
      Marina Macambyra

      Sim, gosto muito. E dá perfeitamente para fazer essas coisas em qualquer tipo de acervo. Mande bala!

  3. Avatar de Luciana Oliveira

    Adorei essa parte! . “Depois de anos repetindo variações do velho discurso de que “o meu legal pode ser diferente do seu”, em algum momento as velhas desculpas deixaram de fazer sentido. Nem todos cresceram solitários e ressabiados com a humanidade como eu, as pessoas simplesmente enxergam no indivíduo que trabalha com um acervo alguém que tem um repertório maior que o delas e querem sim, por que não, a opinião pessoal dele ou dela. Se não quisessem opinão pessoal não perguntariam para uma pessoa”
    E não é isso que nos diferencia do Google? ????

    1. Avatar de Marina Macambyra
      Marina Macambyra

      Ás vezes a gente precisa amadurecer um pouco para entender algumas coisas. Ficou feliz que vc tenha gostado!

  4. Avatar de freedom
    freedom

    Excelente texto Marina! Mas gostaria que os filmes que não estivessem na Flix, tivessem circulação e empréstimo pra quem não estuda na ECA, e é apenas funcionário USP! Isso permanece?

    1. Avatar de Marina Macambyra
      Marina Macambyra

      O empréstimo, de uma forma geral, é para qualquer usuário USP. Funcionários tem o mesmo status que os alunos quanto à prazos e quantidades de empréstimo, somos usuários globais do sistema. Antes da implantação do empréstimo unificado na USP o acervo era emprestado apenas para usuários ECA, agora não há mais distinção. Existem, ainda, filmes que não circulam, geralmente títulos importados de difícil reposição, séries com apenas um exemplar. Flix? O que é isso, Netflix? Nada a ver. Temos muitos filmes que vc não encontra na Netflix.

      1. Avatar de caroline
        caroline

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  5. Avatar de gifs

    adorei o texto, muito bom mesmo!

  6. Avatar de Adilson

    assistam Resgate do Voo 771.

  7. Avatar de Rosana
    Rosana

    Oi!

    Eu gostei da lista de filmes! Sugiro colocar o nome dos atores protagonistas! :). Aproveitando, o campo de trabalho para bibliotecário no cinema é um nicho, que dica voce pode dar?

    1. Avatar de Marina Macambyra

      Oi Rosana! Colocar os atores protagonistas é uma excelente ideia. Não estamos fazendo isso porque tiramos as listas da nossa base de dados e no campo “intérpretes” vai um monte de gente (a lista ficaria muito grande). Às vezes editamos a lista no word para ficar melhor e enxugamos alguns dados, mas isso leva tempo. Infelizmente, não sei se ainda temos um nicho de trabalho com cinema. Cinematecas e arquivos de filmes contratam bibliotecários, mas não existem muitos. Emissoras de TV e agências de publicidade contratavam, antigamente. Não sei se ainda contratam. Talvez você possa oferecer seus serviços a empresas de consultoria na área que possam precisar de profissionais dispostos a encarar um trabalho com filmes. Uma sugestão: se vc mandar seu currículo, explique em linhas gerais, numa linguagem que seus empregadores entendam, o que vc pode fazer por uma coleção de filmes, usando seus conhecimentos de bibliotecária. Será que dá certo? Boa sorte…

      1. Avatar de Rosana
        Rosana

        Marina, valeu a dica! Lista enxuta é melhor mesmo, qualquer coisa a pessoa vai atrás dos protagonistas 🙂

  8. Avatar de jhonata Silva

    Adorei a lista, são filmes ótimos inclusive ja assisti alguns deles

  9. Avatar de Rogério

    Estou com falta de filmes inteligenstes… Vou procurar estes indicados!

    1. Avatar de Marina Macambyra
      Marina Macambyra

      Oi Rogério! Dê uma olhada no blog da Biblioteca da ECA, temos vários catálogos temáticos interessantes. https://bibliotecadaeca.wordpress.com/filmes-dvds-sugestoes/

  10. Avatar de Antonos lopes da silva

    Adorei as dicas de filmes, confesso que já vi alguns desses que você indica mas, ainda não vi os outros.

    https://comoaumentaropenisnaturalmente.com/

  11. Avatar de OLIVEIRA

    mandou bem…

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