A perda de memória do Google

Sempre foi uma constante a comparação do google com o trabalho bibliotecário. Nem acho que a antipatia da nossa parte seja justificada, porque simplesmente nunca deu pra competir. Mas me agrada a oportunidade de rever a finalidade do nosso trabalho quando somos confrontados.

Um texto recente que circulou sugere que o google parou de indexar as partes mais antigas da web: você pesquisa uma página antiga, sabendo que ela existiu, tendo um dia a visitado, utilizando os termos de busca corretos, mas mesmo assim o resultado é zero. Do ponto de vista do business deles, fica impraticável indexar tudo uma vez que não vão conseguir associar banners de propaganda à conteúdos desatualizados e obscuros. ok. Mas o insight do autor do texto é sobre seu modelo mental da web, que pra ele seria uma espécie de arquivo permanente do patrimônio intelectual da humanidade. Para que seja útil, a web precisa ser indexada, assim como conteúdo em uma biblioteca. É um insight sensível e importante. O Google, aparentemente, não compartilha essa visão. Malvado.

Isso casa também com a proposta de arquivamento de tweets pela Library of Congress e recente decisão deles de abandonar a coleta total. A proposta inicial seguia o mesmo motivo por que recolhe outros materiais: para adquirir e preservar um registro de conhecimento e criatividade para o congresso e o povo americano. Mas anos se passaram e o cenário das redes sociais mudou completamente, em suma, esse registro virou uma lixarada só, e desistiram.

Ele faz mea culpa, e talvez muito de nós, estamos usando freneticamente e confiando plenamente na infraestrutura global do Google como índice de pesquisa particular para nossas publicações pessoais. Se essa infraestrutura se perde, a gente desaparece junto. É similar ao antigo dilema de organizar e arquivar fotos na web e constantemente ter de migrar de plataforma, do fotolog para albuns do orkut, do flickr para o google photos, do facebook para o instagram.

Para quem produz conteúdo online isso também é crítico, porque além da dificuldade de acompanhar o lastro das nossas publicações, a ausência de indexação permanente causa um impacto direto nas estratégias de SEO. Não é segredo pra vcs que uma das minhas recomendações a todos os autores deste blog é pensar sempre na composição de títulos e conteúdo que sejam atemporais. Ou seja, que façam sentido pelo maior número de anos possível. Tanto é que a maioria dos posts mais visitados aqui ao longo do tempo pode ser lida e fazer sentido agora tal como quando foi escrita e publicada na origem. Quem trabalha em bibliotecas universitárias sabe que muitos artigos só começam a ser citados décadas após sua publicação, então junte mais essa ao dilema do arquivamento contínuo e perpétuo.

Particularmente não tenho muito neura em relação ao acervo retrospectivo, diferente de quem por exemplo continuamente pesquisa pelo próprio nome no google. Só não dá pra pecar por ingenuidade, reclamar das dores do crescimento da esfera pública online: quem confia em corporações privadas para preservar e arquivar memória e herança intelectual e cultural do público?

Assim, por esses e mais motivos, é obvio que precisamos de iniciativas como o Internet Archive e de preservação do lastro e da privacidade digital, blockchain e tal. E de melhores ferramentas de arquivamento e recuperação. E das próprias bibliotecas. Mas é uma transcendência na nossa atuação, já tentei ser exaustivo no livro sobre o futuro da biblio: tudo isso remete à singela raison d’être bibliotecária que é a organização dos registros do conhecimento para fins de recuperação. Sem tentar ser fofinho, mas seguindo esse quadro a gente ainda se sustenta como profissionais relevantes por mais alguns anos, independente de inteligência artificial. É sucesso.


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Comentários

Uma resposta para “A perda de memória do Google”

  1. Avatar de Canal É Treta

    O que é muito bizarro, é que muita gente não se deu conta desse desvanecer virtual. A grande maioria ainda vive na ilusão de que as coisas que vão parar na internet duram pra sempre. E é claro que não duram.

    Esse ano meu canal de curiosidades no Youtube fez uma experimentação no campo de SEO e indexação. Nós fizemos um vídeo com apostas sobre muitos dos assuntos que todos sabemos que vão dar polemica em 2018 (eleições, oscar, copa do mundo, etc)

    Nossos metadados fora cuidadosamente escolhidos para remeter a esses assuntos, e embora cada um deles vá se desenvolver ao seu tempo, não vamos alterar-los.

    Estamos monitorando a indexação, e a relevância do vídeo ao longo do ano e do afloramento dos temas. Queremos ver, se até o final do ano, nosso vídeo ainda poderá estar entre os 100 ou quicá 1000 primeiros resultados na pesquisa do Youtube.

    Seja como for, fica uma sensação meio esquisita, de que se nosso vídeo fosse um livro numa estante de biblioteca física, mesmo que não fosse muito pesquisado, sua vida útil duraria muito mais, e talvez ele ainda estivesse lá daqui a 30 anos se alguém pesquisasse.

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