Apesar do scihub ter ampliado bastante o acesso por meio de leakings o panorama permanece o mesmo: a publicação científica ainda é dominada pelas grandes editoras (com crescentes margens de lucro financiadas pelo erário); a maior parte dos resultados de pesquisa está distribuida legalmente sob paywalls; pesquisadores dificilmente passam em concursos ou avançam na carreira se não publicarem em top journals; o número de periódicos continua a crescer exponencialmente (apertando o gargalo no processo de submissão já que o número de egressos é ainda maior); frequentes problemas de replicação, nem os top journals são mais confiáveis, além dos periódicos predatórios; as bibliotecas se sujeitam ao corpo docente que é intransigente em relação à manutenção das assinaturas de determinados journals; a tecnologia aplicada à literatura ainda é arcaica moldes anos 90 (muitos periódicos não tem hiperlinks, não tem gráficos 3d, não tem seção de comentários, não tem participação aberta, não oferecem plataformas de colaboração, entre outros predicados); não existem soluções institucionais para armazenar os produtos dos pesquisadores além da produção textual (grosso do que se encontra nos repositórios das principais universidades). Esses pontos estão evidenciados em trabalhos de gente que pesquisa profundamente a publicação científica. (bônus: bibliografia da minha tese sobre prostituição acadêmica).
Uma mudança de percepção em relação a minha posição no passado foi a noção que o comportamento dos pesquisadores era determinado pelos incentivos. Mas agora entendo que, para além do benefício pecuniário e obtenção de recursos, uma vez inseridos na cultura da publicação científica, eles não se importam. Isto é, pesquisadores/docentes não se importam em pagar pra ter artigo publicado em gold access. Se eles (ou por razões óbvias de obstrução de acesso, seus orientandos) pesquisam um artigo, não encontram e/ou encontram via scihub, não conseguem avaliar em que grau isso é ou não prejudicial às suas carreiras. Não fazem a menor ideia de como as bibliotecas funcionam, rúbricas de pagamento, como o Portal Capes adquire as assinaturas, qual o real papel das bibliotecas nas avaliações da Capes e Inep, por que o sci-hub existe, por que ainda exigem a impressão de teses nascidas digitais, qual é o argumento central do open access, etc etc. Se importam somente com suas pesquisas e departamentos. Lidar com assinaturas de periódicos, aquisições de livros, implantação de uma cultura de acesso igualitário, não é com eles, essa deveria ser uma responsabilidade da burocracia e infraestrutura acadêmica. Na verdade eles veem com bastante descrédito o sistema de aquisições, seja de periódicos ou livros (pra que pedir se a universidade alega não ter orçamento?). Estão errados? Talvez não. Entendo que eles tem suas razões para se ater ao sistema e ir contra o movimento de ciência aberta: falta de tempo para compreender o cenário amplo, medo de competição, preocupação com privacidade, plágio, entre outros. Alguns professores criticam minha abordagem defendendo que são conscientes de todo esse cenário, estão fazendo sua parte e que a Capes caminha positivamente. Preferem achar distorcida a realidade em que vivo, tratando minha experiência de bibliotecário em uma BU federal como uma narrativa fora da curva, eu generalizando a publicação a tal ponto que fica difícil para eles convencer seus orientandos a importância de escrever artigos.
Quando eu me dispunha a discutir e falar sobre o tema, em qualquer instância da universidade, minha defesa era simples: periódicos não são mais relevantes para a academia (em função das possibilidades de publicação e disseminação em base web, publish first filter later, distinta dos moldes originais dos transactions da Royal Society); o valor das assinaturas dos periódicos é tão alto que limita o investimento na criação de uma infraestrutura própria (coisa que o Ibict capitania no Brasil, mas passaram muitos anos desde o Budapest Open Access Initiative e o parágrafo inicial aqui nesse texto permanece). O Portal Capes é ótimo, não é o problema, mas ofusca o entendimento do panorama maior. Quanto custa anualmente o Portal Capes inteiro? E se esse dinheiro fosse revertido em outras frentes que não assinaturas?
Atualmente o custo estimado da publicação mundial é 10 bi dólares anuais; o valor de assinatura de um top journal é da ordem de 5k por artigo. APC (article processing charges) varia entre 100 e 5k dólares. Os movimentos recentes desta indústria estão na direção em que os recursos/verba devem ser usados para a publicação em vez da leitura (ou idealmente os casos de rompimento da Alemanha, Suécia, California com a Elsevier, plano S e Fapesp adotando green access). O desafio é participar de discussões e atuar na prática em estratégias de acesso aberto total: convencer a Capes (na figura do Portal) e bibliotecas (como fornecedoras das avaliações e solicitações de assinatura) que é do melhor dos interesses cancelar assinaturas; reverter essa grana para desenvolvimento de uma infraestrutura nacional; desenvolver padrões e definir as funcionalidades necessárias para uma infra de publicação moderna; estratégia para estabelecer um núcleo de funcionalidades para as instituições cooperadoras/conveniadas/capes. Não é uma tarefa simples, mas imaginem de início um scihub inteiramente legal, fazendo harvesting dos repositórios das maiores universidades daqui, que seriam alimentados localmente a contento (a partir de normativas institucionais ou não, tudo que é produto da universidade obrigatoriamente deve constar lá, ao menos uma versão gratuita). As etapas posteriores são da mudança da cultura de avaliação/punição em relação aos locais de publicação dos produtos de pesquisa (difícil demais isso aqui, como fazer os pesquisadores se desvencilhar do fator de impacto, sou pessimista).
Enfim, a proposta é, deixar de pagar assinaturas e pegar esse dinheiro e investir na implementação de uma infraestrutura de publicação acadêmica. Mas por quê? Porque os editores com fins lucrativos estão cada vez se movendo da publicação somente (dentro do ciclo de vida da pesquisa) para a aquisição da infraestrutura de pesquisa. A nossa atenção somente ao paywall nos distraiu das estratégias que essas empresas estão adotando. Não existem mecanismos com força suficiente para mitigar o poder e influência dessas editoras a partir do momento que possuírem controle sobre todo o ciclo da pesquisa (pesquisa, publicação e avaliação). Não existe margem para competição e tendem a adquirir qualquer novo serviço emergente independente (como aconteceu com o Mendeley e algumas ferramentas de altmetria). Trata-se da mesma linha de atuação das grandes empresas que controlam os mercados digitais: mão de obra barata ou grátis, serviço em troca da liberação de dados e privacidade, lucros altos e centralização total, não interoperáveis. Uma vez dominado o mercado é impossível não participar do modelo.
Talvez a única maneira de fazer com que os docentes/pesquisadores abandonem as editoras tradicionais (que não seja pela força de normativas) é oferecer uma infra com todas as ferramentas que vc deseja que eles usem, com tudo mastigadinho (por exemplo, o default da publicação sendo aberta e não o contrário). Justamente aqueles que não se importam ou não fazem a menor ideia, vão adotar o que for mais conveniente, rápido e grátis, para enfim poderem focar na pesquisa. Os que tem receios e tem motivos pra manter o trabalho fechado, vão pelo menos ter a chance de avaliar os benefícios. Uma vez criada a infraestrutura para os produtos de pesquisa, pensar depois em mecanismos para avaliar a qualidade da pesquisa em um cenário em que os periódicos não mais existem.