Finalmente assisti The Public, filme mais recente da categoria “bibliotecários no cinema” e fiquei um pouco inclinado a incluí-lo na minha lista de filmes que todo bibliotecário deve assistir antes de morrer. Mas não vou. Talvez o azar tenha sido que ele veio justo após “Ex Libris: Biblioteca Pública de Nova York”, numa safra de filmes que celebram as bibliotecas como refúgios da imparcialidade e do pluralismo, em tempos de, bem sei lá, esse nosso tempo.
Os dois filmes não entraram no circuito aqui no Brasil, nem estão na netflix, então a saída foi baixar. Me desculpe Emilio Estevez. O ExLibris é um documentário longo e chato, mas que captura com bastante clareza o ideal de biblioteca em uma cidade cosmopolita como NY.
Já o The Public demonstra um admirável respeito pela instituição cívica da biblioteca pública que a gente tanto curte, sem negar que seja antiquada, à qual um personagem do filme se refere como “o último bastião da democracia” (lá no contexto estadunidense). Mas a arte narrativa é menos convincente, acho que a Marina Macambyra simplesmente diria que o filme é bobo.
A trama é inspirada em um artigo publicado em 2007 que relatou a cultura de tolerância aos moradores de rua que frequentam a Biblioteca Pública de Salt Lake City (What They Didn’t Teach Us in Library School: The Public Library as an Asylum for the Homeless -. Sem querer outro livro foi publicado quase que paralelo ao lançamento do filme, The Library Book, que é uma crônica das bibliotecas e o papel vital que desempenham nas comunidades a que servem.)
O filme se passa quase inteiramente dentro da biblioteca pública de Cincinnati. Um bibliotecário gente boa une forças com a população de rua da cidade para realizar uma ocupação durante uma noite de frio intenso.
A biblioteca pública é o refúgio dos moradores de rua durante o dia: um lugar onde podem se encontrar, se lavar nos banheiros e se aquecer. Alguns dos funcionários não são muito simpáticos, o chefão diz ao bibliotecário: “Somos uma biblioteca pública, não somos um abrigo para os sem-teto”. E o bibliotecário desobediente civil responde: “Isso é exatamente o que somos.”
O incidente da ocupação acontece relativamente cedo no filme, deixando a hora e meia restante para a trama martelar seu ponto óbvio (as bibliotecas são espaços públicos e devem permanecer assim) e inevitavelmente esbarrar no tropo do “white savior”, um clássico do racismo hollywoodiano. Os próprios personagens sem-teto no filme querem ser fiéis à realidade mas saem como caricaturas.
Claro que nem mesmo um desfile de clichês de biblioteca não pode desviar a atenção do tema subjacente do filme sobre como as bibliotecas públicas agora são de fato um dos últimos postos da democracia (americana). Dentro de suas paredes, vemos questões manifestas não apenas de falta de moradia, mas de raça, classe, viciados em drogas, doença mental, desigualdade de renda, aquecimento global, a morte dos livros e a perversa máquina política.
É o tipo de filme ativista que oferece uma porradinha a cada minuto sobre o dever público versus segurança pública. Os alvos são fáceis, não precisa problematizar. Me parece que o ator/autor/diretor do filme Emilio Estevez têm, assim como meu estimado Eduardo Marinho, uma inquietação com o estado da nação e uma sensação de que uma boa parte dos cidadãos sofre uma grande injustiça. Tem uma conclusão serena ali, mas fiquei no final com meu pessimismo e a sensação de que nada foi resolvido pros sem-teto.
Nestes tempos divididos e escrotos, filmes centrados em questões políticas fazem uma tentativa de persuadir o outro lado a considerar seu ponto de vista ou jogar com seus aliados políticos e demonizar os inimigos. Normal, sempre foi assim propaganda, vide celeuma em torno de Democracia em vertigem. Como tal, acho que o The Public provoca menos incitação e mais uma chamada à compreensão sem ser cirandeiro. É uma tarefa complexa, com muitas partes que são caras a nós bibliotecários e o ethos da profissão, mas sem se esquivar da brutalidade policial como precedente, o sensacionalismo da mídia, o ativismo ingênuo ineficaz e a infeliz realidade de que manter a lei é muitas vezes uma sanção implícita da desumanização.
Enquanto o filme passa, a gente se acostuma com a ideia de bibliotecários e sem-teto se unindo em protesto, e talvez isso nos distraia da crítica principal: como evitar que as bibliotecas públicas se reduzam a lugares esquálidos, e como essa biblioteca subitamente congrega todos os males da sociedade sob o mesmo teto – e força os usuários enquanto cidadãos a confrontar esses males.
Eu reconheço que o filme se esforça para manter o espectador envolvido, mesmo alguém que não entenda nada de bibliotecas públicas. Sinceramente não achei o filme nada de mais mas ele é honesto pra caramba. Nota 6,5 no meu IMDB.
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Dias desses eu fui na Biblioteca Parque Estadual aqui no Rio, e momentos antes da abertura o cenário era esse da foto abaixo. Não quero expor ninguém mas eram quase todos ali moradores de rua, que literalmente dormem sob as marquises da biblioteca e aguardam ansiosamente sua abertura diária para que possam fazer uso das instalações. É sabido entre os funcionários que eles gostam de assistir aos filmes da coleção, alguns até já tendo esgotado completamente o acervo. Adaptações na rotina de atendimento foram necessárias, como a adoção de uma política específica para o guarda-volumes, visto que os moradores de rua preferem guardar seus pertences na biblioteca a deixá-los expostos na calçada.
Eu não sei se o olhar profissional fica muito criterioso, seria melhor alguém que não é bibliotecário dizer se o melodrama apresenta um quadro racional do dia-a-dia da profissão e é convincente. O filme destaca um problema que as bibliotecas públicas enfrentam não só nos EUA, mas aqui no Brasil inclusive: a tensão que os moradores de rua colocam sobre bibliotecários, que por sua vez não são assistentes sociais ou profissionais de saúde pública/mental.
Moradores de rua passam o dia na biblioteca porque lá é um dos poucos locais públicos seguros onde as pessoas podem ficar sem gastar dinheiro. Às vezes eles perturbam a “ordem”, como quando no filme um homem tira toda a roupa e começa a cantar no meio do salão, ou quando o odor de um é tão pavoroso que afugenta outros usuários. Na moral, qual bibliotecário que nunca teve um usuário fétido empesteando o recinto? Como lidar com essas pessoas? (no filme a biblioteca é processada por usuário que foi convidado a se retirar por conta do mau cheiro, mas ele ganha o processo porque não existem leis que regulem o cheiro das pessoas). Mas normalmente os moradores de rua se retraem, eles sabem que não tem essa de bastião da democracia, biblioteca é ainda um instrumento do Estado, e o Estado é lapada no lombo pra quem está à margem. Eles se sentam em silêncio, folheiam os livros, assistem filmes e usam os computadores. E só.
A primeira cena do filme é um comercial do governo sobre a carreira de bibliotecário, que exige “um amor por livros e pessoas”. O bibliotecário personagem central do filme é esse indivíduo, que gosta de livros e pessoas. Eu vou arriscar a dizer que bibliotecários que trabalham no atendimento, mesmo que não gostem de lidar com humanos, aprendem a fazer na marra. Então o bibliotecário é aquele que, embora saiba das chatices e dos problemas que os desabrigados podem trazer – brigas no banheiro masculino, um cara que fica pelado no meio do salão, um que se recusa a deixar o computador, etc – também sabe todos seus nomes e fala com eles como faria com qualquer outro usuário. Me digam aí se todos vcs não conhecem um bibliotecário exatamente assim?
No final do filme tem uma sequência tragicômica de perguntas muito reais de usuários: pedir ao bibliotecário para encontrar um livro, mesmo que ele tenha esquecido o autor e o título, mas lembra que a capa do livro era vermelha e estava na prateleira de cima; um usuário surdo que faz sua pergunta sobre as quatro nobres verdades do budismo em libras; e uma mulher que gostaria de ver um globo terrestre – em tamanho real.
Em que outra instituição física você pode aprender sobre praticamente qualquer assunto, sem censura? Onde mais os sem-teto são acolhidos como iguais, pelo menos até que não sejam? Se as bibliotecas são microcosmos da democracia, o que significa que às vezes elas fecham ou perdem recurso a ponto do colapso? Muito mais do que apenas lugares para ler tranquilamente e procurar coisas, as bibliotecas conectam idosos e pobres à internet, ajudam os desempregados a arrumar emprego oferecendo classificados e computadores para mandar currículos, proporcionam às crianças atividades extracurriculares e, cada vez mais, oferecem aos moradores de rua espaços seguros para passar o tempo e socializar sem ameaça de expulsão ou coisa pior.
Os bibliotecários deveriam se preocupar se a expulsão de um usuário por reclamações de má higiene é uma violação dos direitos humanos? Não. Mas, como tantas outras instituições públicas que estão com déficit de pessoal e com recursos insuficientes, essa é exatamente uma das situações a quais se sujeitam. Assim, os bibliotecários devem encontrar o equilíbrio entre oferecer informação, recreação e formação a todos aqueles que solicitam e garantir a segurança dos que entram em suas portas. No processo, eles descobrem que a descrição do trabalho, sempre em transformação, também inclui vestir a carapuça sempre que um bode expiatório se faz necessário.
4 respostas para “The Public: a biblioteca pública como último bastião da democracia”
É SEMPRE BOM LER SEUS TEXTOS, CONTINUE, POR FAVOR. OBRIGADA.
Penso que a matéria e a foto tem muito a ver com as bibliotecárias universitárias também. O tema evoca nesses tempos indefiníveis uma ressignificação altamente social para esse aparelho cultural muito além da leitura e da produção de conhecimento.
Ainda não vi. Será que vou achar bobo?
[…] Fonte: Bibliotecários Sem Fronteiras […]