Ela vaga em paz entre as estantes iluminadas apenas pelas luzes dos postes, lá fora. A biblioteca já estava fechada há quase uma hora. O calor e cheiro humanos já estavam totalmente dissipados. Os ruídos dos poucos carros que ainda passavam não interferiam na tranquilidade soturna do ambiente. Esses momentos eram especiais para ela, ainda melhores do que a alegria diurna da biblioteca cheia de leitores. De repente, uma voz áspera interrompe seu passeio.
– Ainda por aqui?
– Desculpa, já fechamos! Você ficou preso?
– Não. Eu não fico preso.
Sim, claro. Agora estava entendendo. Sempre soube que um dia isso iria acontecer, apenas não imaginava que seria assim, tão rápido, que a tampa do esgoto se abriria.
– Por que você ainda está aqui, mulher?
– Eu trabalho aqui. E “ainda” é um termo que não se aplica à minha presença.
– Mas essas horas são minhas, não suas.
A voz já se alterava, autoritária, aflita. Um ligeiro odor a apodrecimento se espalhava no ar.
– Todas as horas são minhas.
– Você quer me enfrentar?
– Sim, quero. Mas cara a cara. Onde você está?
– Onde eu estou? Tente descobrir, mulher.
– Neste mundo ou em qualquer outro, não existe nada que eu não possa descobrir. Ou encontrar.
– Vamos ver.
– Entendi, você quer jogar. Numa biblioteca. Com uma bibliotecária! – A mulher riu alto.
– E se eu arrancar seus ossos e jogar pela janela? A bibliotecária vai gostar desse jogo?
– Posso estar enganada, o que raramente me acontece, mas acho que você precisaria aparecer para fazer isso. Não é mesmo?
A voz se cala por alguns instantes, mas logo volta, alterada, com um tom diferente, quase de aflição.
– Esse lugar está cheio de mulheres. Mulheres fracas, sangrando e cacarejando com vozes agudas enquanto mexem nesses livros. Livros podres, livros comunistas que um bando de pretos vagabundos vem fingir que lê!
– Você pode gritar, insultar, mas não pode se mostrar e muito menos tocar em mim. Sim, quase todos que trabalham aqui são mulheres e a maioria sangra ou já sangrou. E muitos, muitos pretos mesmo vêm aqui, todos os dias. E não só pretos, indígenas também. E sabe quem mais? Homossexuais e travestis de salto agulha e meia arrastão. Queremos todos aqui. – A mulher sibilava.
– É por isso que eu estou aqui, para acabar com essa pouca vergonha! Eu tive muitos filhos quando andava por aí, todos machos. Se um deles fosse veado, eu matava. Melhor filho morto que veado. E se precisar matar trinta mil, eu mato.
– Não, você não vai matar ninguém porque eu não vou permitir. Aqui mando eu. E vou encontrar o livro desgraçado onde você se esconde, antes que você descubra como começar a matar. E quando eu chegar no seu esconderijo, vou arrancar cada página e tratar todas elas com sal, água e fogo, até você começar a ferver e chiar.
– Eu vou matar trinta mil… trinta mil… – a voz insistia, cada vez mais fraca, até desaparecer.
E então a mulher cujo nome estava na placa de bronze da porta da biblioteca suspira fundo e ergue-se no ar, para contemplar do alto o mar de estantes. Por onde começar? Mein kampf? Malleus maleficarum? Teria que agir rapidamente. O primeiro embate foi fácil. A criatura ainda estava fraca e não parecia muito inteligente, ou saberia com quem estava conversando. Mas essas coisas nascidas do ódio e da ignorância crescem rápido e não devem ser subestimadas. Finalmente a bibliotecária que registrou os primeiros livros da biblioteca, há exatos 218 anos, entendia porque jamais havia conseguido sair de lá. Seu trabalho mais importante começava naquele momento.
imagem: Retrato da atriz francesa Rachel (detalhe), por Edouard Louis Dubufe
2 respostas para “O embate”
Às vezes a ficção é bem mais eficiente para atingir objetivos políticos. Marina sabe o que tem a dizer, com muita precisão e sabe contar histórias. Foi na mosca.
Que texto interessante! Fiquei com vontade de ler mais sobre esse embate que jamais termina.