Pandemia e apagamento

Devo à conjunção da pandemia, algumas “lives” e uns tantos posts nas mídias sociais minhas recentes preocupações com apagamento.

Plagiei Borges, descubram.

TRABALHADORES E BIBLIOTECAS

Durante a pandemia, muito se tem falado sobre a necessidade das bibliotecas “se reinventarem”. E, exaustivamente, sobre os cuidados sanitários, quarentenas de livros e procedimentos para oferecer segurança ao público,.

Mas não vejo a mesma animação para falar dos trabalhadores das bibliotecas, de suas condições de trabalho e dos riscos a que estão expostos, como contaminar-se durante o esforço da tal reinvenção ou perder o emprego em plena pandemia, o que já aconteceu com muitos colegas.

Na Universidade de São Paulo, instituição que eu respeito e admiro, mesmo sabendo não ser correspondida, os funcionários só foram liberados para trabalhar em casa uma semana após a suspensão das aulas presenciais. Prefeitura e governo estadual já haviam dispensado os servidores, a USP não. Nossos museus, curiosamente, fecharam antes das bibliotecas, embora estas acumulem mais pessoas por metro quadrado, e por mais tempo. Por quê? Não sei dizer ao certo o que se passa na cabeça da classe dirigente uspiana, mas sei o que essa classe costuma esquecer: bibliotecas.

Mas, enfim, desde o dia 23 de março estou trabalhando em casa. E trabalhando muito, o tempo todo online, fazendo menos exercício do que fazia antes, quando podia andar pela biblioteca. Mas estou consciente de que, comparada aos milhões de brasileiros que não tiveram a chance de se preservar ou que perderam seus empregos, sou uma privilegiada.

Quase todas as bibliotecas da USP fecharam, com exceção de uma ou outra da área médica, por motivos compreensíveis.

A demanda por empréstimo ou digitalização de material impresso, não parou nem um dia, pelo menos na área onde atuo, que ainda usa muito o bom e velho livro impresso, até porque a oferta de e-books não é lá grande coisa. O discurso “as aulas continuam de forma remota, preciso muito desse material para minha tese, não dá para abrir uma exceção? ” foi recorrente durante o período. Em algumas ocasiões, a resposta às minhas detalhadas explicações sobre pandemia e impossibilidade de acesso ao acervo físico era singela: “mas vocês não poderiam digitalizar e me enviar, estou realmente precisando”. Até certo ponto é compreensível. Os estudantes têm suas necessidades, os professores nem sempre são sensíveis ao momento e o egoísmo, afinal, é humano. Mas não deixo de me espantar com a facilidade que tanta gente instruída apresenta em dissociar o serviço do ser humano que o executa. Tive que explicar para alguns amiguinhos mais insistentes que, para o pdf chegar ao recesso quentinho de seu lar, alguém teria que pegar um ônibus lotado em meio à pandemia e ir até a Universidade para digitalizar o material. Não existe mágica, mas sim força de trabalho de seres humanos.

Lá pelo final de agosto, a USP resolveu liberar o retorno de 20% dos funcionários, caso os diretores das unidades achassem necessário. A maioria não achou prudente arriscar a vida de seus funcionários, mas alguns gostaram muito da ideia. Chegaram ao meu conhecimento relatos sobre dirigentes universitários argumentando que, se bares e lojas podiam abrir, por que não as bibliotecas? Observem que não estou falando de “tios do pavê” que se informam pelo whatsapp, mas de professores universitários no topo da carreira, gente extremamente instruída e que não deveria falar bobagens desse tipo.  Anotem aí:

1 bibliotecas só são lembradas quando estão fechadas
2 a saúde dos seres humanos que trabalham nas bibliotecas vale menos do que o livro na mão do estudante ou do professor.

E não foram apenas diretores e diretoras de faculdades e institutos que acharam indispensável o empréstimo de livros em plena pandemia, com as aulas presenciais suspensas na Universidade. Alguns chefes de bibliotecas colaboraram alegremente, ou, no mínimo, não tiveram forças para dizer não a medidas “flexibilizadoras”, e muitos colegas não viram nisso grande problema. De um lado, a ideia da “colaboração voluntária” para evitar o risco de fazer uma convocação oficial, de outro a convicção que usar transporte próprio, máscara e álcool-gel afastaria o perigo. E isso mesmo depois que a Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica, organismo que substituiu nosso extinto Sistema Integrado de Bibliotecas da USP, enviar um comunicado lembrando que o “empréstimo de livros expõe discentes, docentes e servidores das Bibliotecas à contaminação pelo novo coronavírus” e sugerindo a manutenção do atendimento virtual como prioridade, exceto para as bibliotecas envolvidas com a pesquisa sobre SARS-CoV-2.

Num evento recente sobre protocolos de segurança para bibliotecas no pós-COVID – como se a pandemia já fosse parte do passado – bibliotecários de instituições respeitáveis apresentaram medidas que adotaram para reabrir, ainda que parcialmente, os acervos ao público. Trabalhos sérios, claro, baseados em estudos científicos referenciados. Mas, como na maioria dos eventos desse tipo, muito se falou em quarentena de livros, em higienização de espaços, empréstimo com hora marcada e pouco (ou nada) do trabalhador das bibliotecas e suas condições de vida. Menos ainda dos trabalhadores terceirizados que, na maioria dos casos, cuidam da limpeza e da segurança, e do tratamento que recebem das empresas que os contratam.

Fala-se de retorno gradual, mas não se questionam os dados oficiais sobre o contágio e as trapalhadas dos governos no controle da pandemia. Fala-se de caixas de devolução e de digitalização, mas não se menciona o trabalhador – chamado graciosamente de “colaborador” – que vai recolher os livros das caixas e digitalizar os materiais. Mostram-se lindos espaços adaptados, mas não o ônibus lotado que os “colaboradores” tomam para chegar na biblioteca.
Todos falam muito da “reinvenção” das bibliotecas, quase ninguém se lembra do quanto a “reinvenção” deve à eterna exploração do trabalhador.

A impressão que tenho dessas “lives” todas é que bibliotecas são organismos que funcionam sem o trabalho de seres humanos. Para conveniência geral de empregadores, governos e instituições, os trabalhadores são apagados dessa história.

OS INTELECTUAIS E SUAS BIBLIOTECAS

Um conhecido intelectual brasileiro queixava-se, em sua página numa rede social, das dificuldades encontradas para doar sua biblioteca pessoal a uma instituição. Uma amiga bem intencionada marcou meu nome na publicação do professor, pensando que talvez a USP pudesse se interessar.

E lá fui eu esclarecer alguns pontos, por exemplo, que estamos numa pandemia e a maioria das bibliotecas, se não está completamente fechada, suspendeu o recebimento de doações. Achei desnecessário lembrar que as doações não se teletransportam automaticamente da casa do doador até as estantes das bibliotecas. E que os seres humanos que precisam receber e, eventualmente, até ir buscar os livrinhos também estão sujeitos a contágio.  Postei link para um texto no qual explico como é o processo de receber e selecionar doações. O professor, coitado, até mudou o texto de seu post, observando que estava entendendo melhor as dificuldades da coisa toda.

Dei uma espiada nos comentários da postagem e percebi que muita gente está com o mesmo problema: não consegue doar seus livros. E tive que responder, tentando ser delicada, a pelo menos dois comentários: o arrogante que concluiu que bibliotecários não gostam de receber doações porque “dá trabalho” e preferem “comprar um livro por semana” e a inocente que adoraria ter o “trabalho” (assim mesmo, entre aspas) de catalogar livros. Sim, muita gente confunde critérios de seleção e falta de estrutura das bibliotecas com preguiça dos bibliotecários, esses eternos culpados de tudo. E também há os que não têm a mínima ideia do que é, de fato, o trabalho numa biblioteca e de como pode ser árduo – apesar de interessante.

Muitos pesquisadores e professores passam a vida comprando livros, mas nem sempre cuidam bem deles. E como têm recursos para comprar todos os livros que desejam, não costumam frequentar bibliotecas. Mas, em algum momento, percebem que não têm mais espaço em casa, não estão mais usando 95% daqueles livros e não têm para quem deixar seu acervo quando morrerem. Então, sentindo-se generosos, decidem doar tudo a uma biblioteca, e descobrem que a maioria das bibliotecas não precisa, não quer ou não têm condições de receber 1.000 ou 2.000 livros de várias áreas, às vezes empoeirados, fungados, deteriorados e desatualizados, muito menos de ir buscar esses livros na casa do doador. A decepção costuma ser grande.

Por que tantos intelectuais acumulam desnecessariamente centenas de volumes  em suas casas,  em vez de ir doando às bibliotecas, aos poucos, seus livros ainda novos e atuais, para que possam ser aproveitados por pessoas menos privilegiadas? Apego, claro, gente que gosta de ler costuma gostar de ter livros ao seu redor. Mas também pode ser uma questão de poder. Ter muitos livros, emprestar somente a alguns leitores selecionados aquele livro que ninguém mais tem não deixa de ser uma forma de poder. E doar uma enorme biblioteca quando não precisa mais dela é uma forma de atribuir a sua existência um valor adicional. Ou não?

Bem, mas algumas doações são ótimas, e compensam até eventuais despesas com higienização e encadernação. Então, por que é tão difícil encontrar abrigo para bibliotecas pessoais? Creio que a maioria dos bibliotecários sabe a resposta: porque não damos valor a bibliotecas e instituições culturais em geral neste país, não cuidamos delas, não investimos recursos nelas, e até elegemos autoridades que desprezam a cultura, e ignoram a ciência e destroem a educação. Se não fosse assim, o Museu Nacional não teria pegado fogo e a Cinemateca Brasileira não estaria fechada.

Não adianta aliviar a consciência atribuindo a culpa à “preguiça” dos bibliotecários. O problema é bem mais profundo.

Mas temos culpa, me parece, quando não conseguimos lidar de forma amigável com as ofertas que precisamos recusar. É preciso sensibilidade para entender que a quebra das expectativas dos candidatos a doadores tende a ser dolorosa, e que uma recusa pouco diplomática pode ter consequências ruins para nossa imagem profissional.

A TROCA DE PDFs

Por curiosidade, frequento um desses grupos destinados à troca de livros digitalizados que pululam no Facebook. Esse foi criado em maio deste ano, em plena pandemia, e hoje já tem mais de 30.000 integrantes, que pedem e postam links para livros em pdf. Mais pedem do que obtêm, na verdade, pelas minhas contas.

É um fato da vida: leitores e estudantes precisam de livros, sobretudo na área de humanidades. Nem todos têm acesso a bibliotecas e, mesmo que tenham, muitos acham mais simples procurar um pdf na internet. E agora, com tantas bibliotecas fechadas pelo novo maldito coronavírus, esses grupos devem estar sendo a salvação de muita gente. Mas o que chamou minha atenção foi o pessoal que, além de procurar títulos específicos, também faz buscas por assunto. Algumas são bastante específicas e preguiçosas, como essa pessoa que não está com muita vontade de preparar seu próprio trabalho:

… preciso de um plano de aula sobre guerra fria, nono ano de história

Outras são definitivamente muito genéricas:

PDFs sobre educação, alguém? Estou precisando muito.

E há os que solicitam indicações:

Olá pessoal, poderiam me recomendar livros sobre psicanálise?

Muitas dessas questões, que costumam permanecer sem resposta no grupo, poderiam ter sido dirigidas a um serviço de referência de biblioteca. Na maioria dos casos, qualquer bibliotecário de referência razoável teria oferecido orientação ou, ao menos, indicado fontes. Somos treinados e estamos acostumados a ouvir as perguntas mais inusitadas e a responder com paciência até as mais ingênuas.

Então, o que está acontecendo?

Essas pessoas, provavelmente pesquisadores ou estudantes, não pensaram em consultar uma biblioteca de sua área de interesse? A porta física da maioria das bibliotecas ainda está fechada, mas há outras portas abertas para comunicação com os bibliotecários, que continuam trabalhando. Ou pior, talvez não entendam a biblioteca como um “lugar de fazer perguntas”. Imaginam que jogar apelos desesperados num grupo de mais de 30.000 desconhecidos pode ser mais eficiente do que consultar um profissional. Nada surpreendente, na verdade. Já conversei com muitos estudantes que simplesmente ignoravam a existência de uma profissional chamado “bibliotecário de referência” que serve, entre tantas coisas, para responder perguntas. E estou me referindo a estudantes da USP, que têm boas bibliotecas à sua disposição.

Mas não posso, infelizmente, excluir a hipótese do mau atendimento, do atendimento burocrático ou impaciente, do bibliotecário de porta fechada e inacessível, porque isso existe.

RESUMINDO

Somos apagados quando:

Nossa condição de trabalhadores é escamoteada, até pelos colegas em posição de poder ou de destaque.
Nossa condição de seres humanos sujeitos ao adoecimento e à morte é esquecida, em nome de um atendimento que supostamente não pode parar.
Nosso trabalho não é enxergado pela sociedade ou não é entendido como trabalho.

E também quando nos perdemos no doce discurso do amor pela profissão e na cega convicção de nossa importância, sem considerarmos o quadro social, econômico e político no qual vivemos.

Bette Davis como bibliotecária em “Storm center”

E quando não participamos coletivamente, enquanto profissão feminina indissoluvelmente ligada à cultura, educação e ciência, de manifestações de rua carregando faixas que gritem:

Bibliotecárias contra o machismo
Bibliotecárias contra o racismo
Bibliotecárias contra a homofobia
Bibliotecárias contra o desmonte das instituições culturais
Bibliotecárias pela democracia
A Terra é redonda

 

foto destacada (com edições): Gael Varoquaux


3 respostas para “Pandemia e apagamento”

  1. Exatamente. Inclua aí também os nossos CRB’S sanguessugas que cagam e andam para fiscalizar as condições de trabalho em que vivemos. Muito triste isso tudo…

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